Personagens Que Se Mascaram umas nas Ourtras: Ral e Camilo

Ral Ruiz, com seu Mistrios de Lisboa (2010), faz uma verso esteticamente apaixonada do universo de Camilo Castelo Branco

21/08/2016 22:48 Por Eron Duarte Fagundes
Personagens Que Se Mascaram umas nas Ourtras: Raúl e Camilo

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Raúl Ruiz nasceu no Chile, mas muito cedo, nos tempos das complicações entre intelectuais e ditaduras sul-americanas, se exilou na França, onde alterou o nome, para facilitar a pronúncia dos franceses: Raoul. Agora, convidado pelo produtor lusitano Paulo Branco, que vive recrutando coisas na França, a filmar o romance português Mistérios de Lisboa (1854), de Camilo Castelo Branco, o chileno volta a utilizar seu prenome de origem ibérica: Raúl.

Camilo Castelo Branco é um dos grandes romancistas da língua portuguesa. Foi filmado por seu patrício Manoel de Oliveira em Amor de perdição; memórias de uma família (1978); Camilo foi personagem em outros dois filmes de Oliveira, Francisca (1981) e O dia do desespero (1992), este relatando o que antecedeu o momento em que Camilo se suicidou ao descobrir, saindo duma consulta oftalmológica acompanhado de sua esposa, que seria cego pelo restante da vida. Seu Mistérios de Lisboa, histórias de pessoas sempre à beira do desespero, foi o segundo livro do escritor, teve inicialmente publicações sob a forma diária de folhetim no diário portuense “O Nacional”, em 1853; no ano seguinte apareceu em livro.

Raúl Ruiz, com seu Mistérios de Lisboa (2010), faz uma versão esteticamente apaixonada do universo de Camilo. Trata-se dum universo itinerante. Passa-se boa parte em Lisboa, onde o órfão João tem uma história (ou origem) misteriosa para ser aberta; mas o filme viaja pelo Brasil, pela Itália e circula um bom tempo entre a nobreza francesa; assim, além do português, ouvimos o inglês, o italiano e, mais que todos, o francês circulando pelos diálogos cheios de sugestões, engenhos e cavernas linguísticas do filme a partir do texto de Camilo.

São muitas as criaturas que desabrocham em histórias em Mistérios de Lisboa. Mas duas centralizam: o menino João e o padre Dinis; padre Dinis sabe da história de João, e a conta para João e para o público, mas lá pelas tantas enveredando por sua própria história, ele também um filho de um amor proibido ou reprimido socialmente, o cura parece confundir-se, espelhando, com o órfão que ouve sua história ao religioso. Diário de sofrimentos, como definiu Camilo de suas anotações lisboetas, o filme de Diniz segue também a perplexa permuta de nome e identidades entre as personagens. Assim, Pedro, João, Álvaro, Dinis, Sebastião de Melo, Come-facas, Alberto Magalhães são nomes que se trocam entre si, mas o que menos interessa é fazer os liames fáticos, os jogos de perturbações valem por si mesmos, como jogos narrativos.

Em vários momentos Ruiz exibe uma beleza de seu cinema de que este comentarista não tinha conhecimento (os dois únicos filmes dele que conheço foram ambições frustradas, Três vidas e uma só morte, 1983, e O tempo redescoberto, 1998). São soberbos os instantes em que a câmara de Ruiz parece dançar acompanhando os diálogos agudamente camilianos das figuras em cena. Há angulações de cenários profundamente inesperadas, uma criatividade irrefreável: sobre uma cama de moribundo, a câmara se põe no teto da cena, ora fica sobre o agonizante, ora se desloca para os circunstantes, criando um ponto de vista esteticamente exótico; é, pode-se dizer, o olho alucinado do observador.

Ruiz soube, em Mistérios de Lisboa, utilizar o passional de antigas e intemporais histórias para produzir uma força cinematográfica de grande vivacidade. Seduz por seus arcaísmos e pós-seduz pela paradoxal ultramodernidade destes arcaísmos justapostos. Para além de todo este arcabouço de narrativa fílmica, impressiona igualmente ajustes interpretativos que Ruiz extrai dum elenco variado, onde, lado a lado com atores lusos (Adriano Luz, Maria João Bastos, João Luís Arrais à frente) surgem intérpretes franceses, como Clotilde Hesme e Léa Seydoux.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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