A Tagarelice Cinematografica de Caetano

O Cinema Falado envereda por aquilo que seu letreiro inicial indica: um filme de ensaios

18/08/2022 12:49 Por Eron Duarte Fagundes
A Tagarelice Cinematografica de Caetano

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Creio que a primeira exibição pública de O cinema falado (1986), o único filme dirigido pelo cantor Caetano Veloso, se deu no FESTRIO, uma mostra cinematográfica daqueles anos que se dava anualmente. Naquele novembro cinematográfico de 1986 eu estava no Rio; mas não compareci à sessão do filme de Caetano; tinha visto quatro filmes naquele dia, estava cansado, e a exibição de O cinema falado se daria à meia-noite; embora afeiçoado às experimentações de linguagem em que o músico Caetano, na contramão da musicalidade mais assimilável de suas canções populares, inseria sua narrativa de vomitórios ensaísticos, calculei que meu cansaço e o horário tardio poderiam prejudicar minha apreciação do filme. No dia seguinte, nos jornais do Rio, li os tumultos da sessão do filme. Diziam que Arthur Omar, conhecido por seu cinema ousado e marginal, vociferara contra o filme, na meia hora final de projeção, dizendo que Caetano estava fazendo um pastiche ruim daquilo que ele, Omar, mais Júlio Bressane (que aparece no filme de Caetano) e Rogério Sganzerla tinham feito vinte anos antes. Diziam os jornais que os admiradores de Caetano mandaram Omar calar a boca. Ao que parece, a plateia, essa plateia, foi um espetáculo à parte na sessão. Lamentei não ter ido: fatos históricos depositados numa sessão de cinema. Vi o filme no ano seguinte, 1987, em Porto Alegre. Lembro que o crítico Tuio Becker, estressado na época com o desmonte dos jornais da Caldas Júnior onde trabalhava, me revelou que gostara do filme, tendo ido em tumulto emocional para a sessão, e saíra do cinema, digamos assim, desopilado de seus graves problemas profissionais. Estas, minhas lembranças históricas.

Revisto agora, na internet, O cinema falado abre ao espectador tanto suas irregularidades formais quanto o engenho de algumas encenações individualmente consideradas. A influência central, ao contrário do que Omar dizia em seus vitupérios, não é o cinema marginal brasileiro, de que latitude formal for. É Jean-Luc Godard e seus excertos ensaísticos diante das câmaras. Especialmente um filme como A chinesa (1967), uma notável articulação entre frases e ideias montada por Godard em seu esplendor. Caetano não chega a tanto, mas se aproxima dos conceitos godardianos. Proposto em princípio como um documentário de entrevistas entre amigos (Júlio Bressane, Regina Casé, Gilberto Gil, Elza Soares, Chico Diaz, Dorival Caymmi desfilam depoimentos recriados na montagem), O cinema falado envereda por aquilo que seu letreiro inicial indica: um filme de ensaios. Há um longo trecho em que um ator recita Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa; esta sequência esticada e estática em literatura hesita entre o fascinante e o fastidioso. O que é absolutamente genial é a interpretação de Regina Casé, recriando os discursos e os gestuais de Fidel Castro, cujas entrevistas ela viu em Cuba, fazendo-nos lembrar como Regina já foi bastante superior como intérprete a tudo o que ela tenha feito recentemente, mesmo que ainda se possa amar bastante suas interpretações, no cinema, na televisão. O lado musical de Caetano inevitavelmente transparece nos subterrâneos de seu filme. Rodrigo Cardoso dançando efusivamente para uma câmara que, parada, vê um palco em plano médio. O próprio Caetano vai aparecer assobiando partituras de Nino Rota para antigos filmes de Federico Fellini. No rosário formal e temático em que está incrustado, O cinema falado lembro agora algo que me disse Tuio Becker então: não serve para nada, mas é bom.

Como curiosidade histórica, é bom observar que quase simultaneamente apareciam nos cinemas mundiais e brasileiros dois outros filmes em que cantores pop de prestígio investiam na direção cinematográfica. Laurie Anderson fez Home of the brave (1986), a filmagem dum show musical transformada em experimentação apocalíptica. E David Byrne rodou Histórias reais (1986), um documentário que converte as imagens reais numa construção semificcional. Hoje tanto o filme de Caetano quanto os de Laurie e de Byrne são peças de estudo para aficcionados.

Como informação proto-histórica, um das teses expelidas em O cinema falado é sobre o modo de falar nos filmes brasileiros e a maneira como esse modo tem sido recebido ao longo das décadas pelo público e pela crítica. No texto do filme se diz que as falas cinematográficas brasileiras foram tão criticadas que se chegou a culpar a língua portuguesa pelo desastre. Até o momento em que as telenovelas trouxeram o público para a oitiva natural de nossa língua. O homem que fala em O cinema falado grita para um canto invisível do plano: Manoel de Oliveira, Manoel de Oliveira. A língua portuguesa? Muitos anos depois, talvez um pouco inspirado nesta questão de Caetano, cujo filme ele pode ter visto, o próprio Manoel de Oliveira, cineasta aludido ironicamente por Caetano em seu filme, fez um filme com título parecido: Um filme falado (2003). Nas discussões sobre as relações entre cinema e televisão (filmes brasileiros clássicos, como Xica da Silva, 1976, de Carlos Diegues, que não teriam resistido à sua passagem para a televisão), Caetano expunha uma das preocupações que todos tínhamos na época. Hoje é isto mesmo: proto-história.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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