Sociedade, Individuo e Insatisfacao
Alain Tanner fez, especialmente entre os anos 60 e comeco dos 80, filmes que refletiam muito das inquietacoes dos intelectuais humanistas da epoca
O suíço Alain Tanner fez, especialmente entre os anos 60 e começo dos 80, filmes que refletiam muito das inquietações dos intelectuais humanistas da época; o assunto, tal como transparece nas narrativas de Tanner, tem data, porém é impressionante como estas obras, pela natureza única da encenação de seu realizador, chegam ao espectador do século XXI, tão metamorfoseado na essência destas inquietações que Tanner expõe em seus trabalhos. Charles vivo ou morto (Charles mort ou vif; 1970), uma de suas primeiras realizações, para sempre inédito nos circuitos brasileiros (consta, em crônica dos anos 70, que o filme foi visto em festivais de cinema no Rio e em São Paulo), é uma amostra desta energia cinematográfica que um artista como Tanner sabe fazer entranhar numa narrativa e tornar-se viva ainda que as décadas possam ter modificado (não inteiramente) as mesmas relações observadas nas cenas que deparamos.
Em Charles vivo ou morto Tanner acompanha a vida de um empresário suíço do ramo de relógios num momento em que, à porta da velhice, ele não tem mais (aparentemente) o que conquistar na vida. Entediado de sua existência, esnobado por seu filho (um arrivista que é, hoje, bem uma composição de época), Charles, o dito homem de negócios, decide lá pelas tantas cair fora do mundo que ele ajudou a construir, familiar, capitalista, bem comportado; deixa a todos na família em polvorosa à sua procura. Em seu caminho, Charles topa com um casal que vive à margem, e com eles empreende uma viagem em busca de valores mais naturais que aqueles dos artifícios capitalistas. A trajetória é feita de muito sarcasmo pelo olhar agudo de Tanner: uma espécie de comédia derrisória, muito mais profunda que outras investidas do gênero. Da família, a primeira que encontra Charles “em seu novo mundo” é a filha, uma jovem que, diversamente do irmão, compõe um tipo “hippie”, mais de acordo com os “novos tempos” de seu pai.
Numa obra posterior de Tanner, Messidor (1979), duas garotas na estrada se afastam cada vez mais das cidades em suas andanças. As divagações de Charles no espaço geográfico se assemelham um pouco a isto: fugir a uma sociedade que, apesar de ele estar no topo da escala, o oprime e também deprime em suas aspirações de indivíduo. Numa obra concomitante com a de Tanner, O jardim das delícias (1970), o espanhol Carlos Saura se voltava para os delírios surrealistas dum milionário paralítico à época da ditadura franquista; Tanner, é claro, é mais objetivo em seus símbolos que o olhar-viés de Saura, um espanhol descendente de Luis Buñuel. A aproximação aqui vai por conta duma visão de cinema em que se observa um tipo de excentricidade das classes privilegiadas numa sociedade que se desumaniza: se artificializa. Numa escavação mais remota na história do cinema, pode-se ver a origem deste cinema feito na Europa entre os anos 60 e os anos 70, em Europa 51 (1952), do italiano Roberto Rossellini: Irene, a personagem burguesa vivida por Ingrid Bergman, é tida como demente por sua família, pois se aproxima estranhamente dos pobres logo depois do suicídio de um filho pequeno. No fim de Charles vivo ou morto Charles é capturado por enfermeiros dum manicômio: para a sociedade estabelecida seu comportamento é o de um louco; assim, ele é retirado violentamente do convívio com o casal de seu novo tempo e conduzido como um prisioneiro, prisão na sociedade, prisão manicomial.
No papel central, o ator suíço François Simon traz uma interpretação tão natural ou desabusada e irônica que o espectador de razoável memória evoca o modelo interpretativo de Michel Simon, pai de François, como a criatura principal de Boudu salvo das águas (1932), de Jean Renoir, onde também o conflito entre indivíduo e sociedade era aprofundado. No elenco, está a filha de François, Maya Simon, vivendo Marianne, a divertida e irrequieta filha de François.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br