O Gibi Que Pensa a Si Mesmo
Kick-Ass gerou um filme muito interessante do americano Matthew Vaughn
“Sempre me perguntei por que ninguém nunca tentou.” Esta é a primeira frase do gibi Kick-Ass, quebrando tudo, escrito por Mark Millar e desenhado por John Romita Jr. Sobre uma espécie de plano geral da cidade mostrando arranha-céus e um fundo levemente esfumaçado com um primeiro plano do corpo de um indivíduo de costas contemplando o plano geral, bate esta frase estranha e incompleta ou estranha porque incompleta. Falta o complemento direto do verbo: tentado o quê? Pode ser coincidência estética (e provavelmente o é: ou não?), mas esta forma inicial (ou introdutória da narrativa) remete ao princípio de um dos mais festejados romances do século XX, Viagem ao fim da noite (1932), do francês Louis Ferdinand Céline, também narrado na primeira pessoa por uma entidade (literária em Céline, de quadrinhos em Millar e Romita) estranhíssima, subterrânea mesmo. As duas primeiras frases de Céline: “Foi assim que isso começou. Eu nunca tinha dito nada.” O indefinido em Céline: isso o quê? nada o quê? que deveria ter dito? o silêncio? Kick-Ass retoma como pontapé inicial estas indefinições: nunca ninguém tentou; quem é ninguém? tentar o quê? Aos poucos as coisas se aclaram: o garoto-personagem quer ser um super-herói; é um guri comum, como todos, que não acha o cotidiano divertido e vê em colégios e escritórios uma maçada que só a imaginação livre pode vencer.
Kick-Ass gerou um filme muito interessante do americano Matthew Vaughn, uma das melhores amostras das relações entre quadrinhos e cinema. Vaughn divertiu-se com o fantasioso, que existe nos quadrinhos, mas o gibi é mais cru e áspero tanto em seus diálogos capazes de embrutecer o verbo quanto em seus quadros onde prevalecem as cores mais sombrias e os tons e posições mais violentos dentro da cena.
Um gibi parte da literatura (a narrativa em palavras), mas usa o desenho e simula coisas da fotografia e do cinema (a narrativa em imagens), podendo chegar a aproximar-se das pinturas. É o mais das vezes lúdico, como a poesia. Kick-Ass, quebrando tudo se vale disto tudo com inteligência e senso de medidas de sua arte. E acrescenta, sem maneirismos, um elemento posterior à pós-modernidade: o universo pan-informático, onde quase todas as coisas têm suas fórmulas no computador, nas entranhas da linguagem das máquinas; não é um modismo, não é uma maneira, é outro elemento de estética contemporânea tratado sem que as coisas pareçam “modernosas”.
Hit-Girl, a protagonista paralela, anota em seu diário: “Quando a maioria das meninas da minha idade tava fazendo manha por uma boneca dos Bratz ou uma My Scene, eu pedi pro Papai Noel uma M16 e duas soqueiras de prata”. E acresce: “Não preciso de brinquedos. Não preciso de amigos. Não preciso de escola”. Dave, o ego de Kick-Ass, escrevia no início de sua história que, como todos os garotos de sua idade, ele meramente existia. O que vem nas páginas seguintes é o encontro destes dois opostos: a garota diferente e o garoto igual que quer tornar-se diferente; deste encontro nasce a aventura quadrinizada de maneira inspiradíssima.
Dos “planos brutais” assinalados pelo roteiro conforme descrição de Millar à autenticidade e engenhosa força dos desenhos de Romita, Kick-Ass, quebrando tudo diz sem meias línguas a que veio: quebrar certas regrinhas de salão com vocábulos desbocados e imagens desabusadas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br