Um Estudo da Rejeicao
Kafka foi um dos mais inovadores artistas da ficcao que teve no inicio do seculo XX
O tcheco Franz Kafka é um dos casos mais paradoxais da literatura do século XX. Adotando um certo classicismo de expressão e narrativa, depurando sua tendência ao despojamento de linguagem, Kafka foi um dos mais inovadores artistas da ficção que teve no início do século XX seu apogeu, sem que sua inovação aparecesse como esforço estético; Kafka inseriu o conteúdo estranho de seus relatos em sua própria maneira de narrar, usando de seu assunto como matéria de linguagem.
A metamorfose é talvez sua obra mais característica, em que sua automelancolia exubera. Um estudo da rejeição, a novela kafkiana é na verdade um autorretrato, pois, embora narrada na terceira pessoa, nota-se que Gregório Samsa é o próprio Kafka. Com elementos domésticos (o pai, sempre uma figura determinante em Kafka, a mãe, a irmã, a criada), Kafka logra, sem os voos introspectivos de seus modelos do século anterior, atingir o âmago de um microcosmo humano que tem na figura do homem que uma bela manhã se converte em inseto o ponto nevrálgico.
O caso literário único em A metamorfose é que, valendo-se de contenção de ideias e formas, Kafka realiza um estudo das relações familiares e do fenômeno da rejeição em nosso tempo em precedentes e sem descendentes. Numa época em que o número de indivíduos rejeitados pela sociedade (seja pela conduta excêntrica, seja pela inabilidade de sobreviver na competição social) aumenta, a atualidade de Kafka, nestes anos tortos do início do terceiro milênio, é um dado.
Os atritos que surgem espontaneamente dos gestos das pessoas da família estão milagrosamente em seus lugares para provocar o sentimento de impotência e estranheza do homem contemporâneo. Falando de si mesmo, um incompreendido ou um inadaptado, Kafka chegou ao coração do homem de seu tempo.
“Aquela grave ferida, da qual demorou mais de um mês para se curar— ninguém se atreveu a tirar-lhe a maçã, que assim ficou encravada em sua carne, como visível testemunho do acontecido—, pareceu recordar, inclusive ao pai, que Gregório, apesar de sua triste e repulsiva forma atual, era um membro da família, ao qual não se devia tratar como a um inimigo, porém, pelo contrário, respeitá-lo e que era um dever elementar da família sobrepor-se à repugnância e resignar-se.” Resignar-se e nada mais.
Mas não foi isto o que ocorreu. A família o rejeitou; o episódio com os hóspedes foi o que deflagrou o golpe final desta rejeição ao aspecto horrendo de Gregório, levando-o afinal à morte. A metamorfose é também uma reflexão sobre o culto das aparências nas sociedades humanas; construído de interioridade, a personagem de Gregório Samsa é enxergado antes como o inseto asqueroso. Um inseto: é como Kafka devia sentir-se no mundo familiar em que vivia. Um estranho mundo de estranhezas. Não admira que tivesse glória póstuma, quando já não poderia sentir o calor de seus admiradores.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br