O Que Define uma Cidade
O Senhor do Lado Esquerdo mistura varias equacoes narrativas
A frase que abre O senhor do lado esquerdo (2011), romance do carioca Alberto Mussa: “Não é a geografia, não são os heróis nem as batalhas, muito menos as crônicas de costumes ou as imagens criadas pela fantasia dos poetas: o que define uma cidade é a história dos seus crimes.” O crime que deflagra a narrativa de O senhor do lado esquerdo é o assassinato dum figurão da república brasileira incipiente num prostíbulo que não era somente um prostíbulo: o secretário da presidência no governo de Hermes da Fonseca foi morto na chamada Casa das Trocas, situada no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio, onde circulavam mulheres à venda e cuja mansão foi também onde se escondia a Marquesa de Santos, amante de Dom Pedro I.
Em O senhor do lado esquerdo Mussa reedita sua habilidade narrativa vista em O trono da rainha Jinga (1999). Numa linguagem já mais terra-a-terra com os leitores do século XXI, mas ainda exigente e rigorosa para estabelecer relações entre a trama e o modo de escrever esta trama. Com uma tessitura extraordinariamente pensada e de rara sensibilidade romanesca entre o inventado e o histórico, o policial e o psicológico, O senhor do lado esquerdo mistura várias equações narrativas: é um mosaico estético que olha para várias possibilidades de crime, e a árvore literária torna-se frondosa. Que vemos? “A antiga casa da marquesa de Santos não era tão-somente clínica ginecológica, maternidade, bordel, local de encontros clandestinos e de orgias. Era também —sabemos agora— o mais sigiloso e completo laboratório de observação e arquivo de dados sobre a vida sexual de uma cidade, em todo o mundo.” A cidade medida pelos caminhos do esperma e da libido: o bordel como holofote que não é somente um bordel. “Sabemos que as mentes matemáticas têm grande propensão ao misticismo.” Os romances de Mussa parecem interligar-se: em certo momento a história da rainha Jinga é referida. Outro crime da cidade.
Nas sombras da cidade e dos crimes, um homem e uma mulher podem ser a mesma pessoa. Fortunata e Aniceto são vistos por testemunhas como alguém que poderia ser o outro: o homem-mulher proustiano se tornaria em Fortunata-Aniceto, duas coisas em um?
Erótico e denso, hábil e original até certo ponto, O senhor do lado esquerdo é um romance-investigação-criminal cujo propósito é mais estético que factual. É o Rio das letras (de Machado de Assis a Lima Barreto) que vemos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br