Tiradentes e a Liberdade em Duas Paginas

Os dois lados: o literario e o cinematogafico

14/12/2022 14:55 Por Eron Duarte Fagundes
Tiradentes e a Liberdade em Duas Paginas

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I — A PÁGINA LITERÁRIA

Romanceiro da  Inconfidência (1953), de Cecília Meireles, é um poema narrativo. Talvez seja nossos Lusíadas. Sem a pena de alto-mar de Camões. É antes feito das sombras que circundam as colinas das Minas Gerais onde se esconde o ouro. “O país da Arcádia, / súbito, escurece, / em nuvens de lágrimas. / a tormenta cresce.” Cecília pretende, partindo dos autos dos processos dos inconfidentes mineiros do século XVIII e daquilo que se perpetuou nos séculos na voz popular sobre estes fatos históricos, plasmar literariamente estas personagens de profunda oralidade no Brasil.

O imaginário encontra a materialização na literatura. E numa literatura, a da poetisa Cecília, de extremo refinamento. Sem perder os contatos com o público do tempo em que o poema foi escrito e publicado por Cecília. Um pouco como uma trovadora medieval, um pouco como uma romancista contemporânea em versos: para fazer sentido tanto tempo depois da Inconfidência. De recuos semântico-sintáticos (‘—Tanto impou de namorado!”) a ritmos de notável contemporaneidade (“Veio maio, foi-se maio”, “era em maio, foi por maio / sem calhandra ou rouxinol”), Cecília propõe sua história lírico-transcendente da inconfidência mineira; a revolução nas formas de Cecília são instantes de poesia, que é no verbo dela revolucionária. “Que tempos medonhos chegam, depois de tão dura prova? / Quem vai saber, no futuro, / o que se aprova ou reprova? / De que alma é que vai ser feita essa humanidade nova?”

Começa com tercetos precisos e de rigor formal para dar os cenários de época, recriados à luz-sombra do século XX, e depois se espalha por estâncias bárbaras, plenas, livres, feitas somente de rigor interno, como nesta de um ato de cutucar os fracos, os que fazem fraquejar a revolução, “Fala aos pusilânimes: / Se vós não fôsseis os pusilânimes, / recordaríeis os grandes sonhos /que  fizestes por esses campos, longos e claros como reinos.”

 

 

II — A PÁGINA CINEMATOGRÁFICA

Joaquim Pedro de Andrade, para construir uma filmografia de rigor e profundidade, voltou os olhos cinematográficos para a literatura. Seus filmes partem de livros para materializar seus roteiros. No caso de Os inconfidentes (1972) a questão da origem literária do roteiro se torna muito complexa. Talvez o impulso central seja o épico-narrativo Romanceiro da Inconfidência (1952), de Cecília Meireles. Mas Joaquim Pedro foi também às fontes originais, as mesmas vasculhadas por Cecília: os Autos da Devassa da Inconfidência (publicados originalmente em 1794) e a própria literatura dos intelectuais que se envolveram na causa inconfidente (os poetas Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manoel da Costa). Na primeira parte do filme os versos dominam nas imagens, substituem diálogos ou discursos prosaicos. Mesmo adiante, ao longo do filme, os versos sempre tornam. Mas os faróis são utilizados com distanciamento e austeridade pelo cineasta. Gilda de Mello e Souza, em ensaio da época do lançamento do filme, disse que o processo estético de Joaquim Pedro difere daquele do francês Robert Bresson. É uma distinção que os aproxima em termos: como Bresson, que fez uma reconstituição a partir dos autos processuais em O processo de Joana d’Arc (1961), Joaquim Pedro propõe uma narrativa de época em que, paradoxalmente, o despojamento de cenários obedece a um rigor e a uma concentração de meios extremada. A estranheza do espectador não se dá somente pelos versos: dá-se pelo inusitado da ausência de objetos que caracterizam um tempo histórico.

Os inconfidentes, cujo escopo era ser um grito de liberdade dentro dos rompantes do Cinema Novo da década anterior, aparecia no momento-auge da ditadura militar, onde se proibia o menor suspiro contra o regime e o mundo intelectual que ainda restava por aqui tinha de dançar para dar seu recado. Os inconfidentes corria o risco censório: desde seu projeto original. Mas, por detalhe, o filme de Joaquim Pedro seguia, em seu princípio, um modelo que os “filmes do regime” costumavam seguir naqueles anos, ilustrar cinematograficamente obras prestigiadas da literatura. Com seu filme Joaquim Pedro mimetizava estes esquemas oficiais, embora fosse uma outra coisa. Isto acontecia também com São Bernardo (1972), de Leon Hirszman: por trás duma homenagem literária, uma crítica à sociedade capitalista. No caso de Os inconfidentes, o regime autoritário descobriria o disfarce? Há uma sequência em que José Wilker/Tiradentes diz, um pouco para seus companheiros, um pouco para a câmara/espectador que era preciso primeiro desejar a liberdade, depois ver meios de chegar a ela. Perigoso para o sistema? Na sequência final, Joaquim Pedro pula do filme de época para uma cena contemporânea da filmagem e utiliza imagens oficiosas dum desfile militar em que o governo exalta Tiradentes e seus camaradas como “heróis da pátria”, tornando-os ícones do  próprio regime. Consta que Joaquim Pedro inseriu estas cenas para que o filme pudesse passar: era uma concessão, em seu tempo, a uma exaltação militar. Na verdade, na montagem, tem um aspecto crítico e até sarcástico, que passou despercebido aos obtusos militares. Joaquim Pedro põe aí uma reflexão sobre a incorporação pelo sistema dos signos revolucionários da história, marmorizando-os. As coisas historicamente andam em círculos, diz o filme. Anos depois, outro filme brasileiro, Aleluia Gretchen (1976), de Sylvio Back, parecia apontar para a perenidade de certos processos históricos: ainda que as circunstâncias de cada tempo tragam outras variáveis.

A Inconfidência Mineira deu-se entre 1792 e 1789. Neste 1789 começou na Europa a Revolução Francesa, que expirou em 1794. Em ambas: o grito pela liberdade. Em ambas: autofagias e traições; fuligens no fim. Em As noites revolucionárias (1794) o escritor francês Restif de la Bretonne documentou em palavras o dia-a-dia do horror revolucionário. Os inconfidentes se abeira do documentário e traz um assunto sempre presente: o papel do intelectual na vida brasileira. Como poetas árcades saíram de seus gabinetes e se meteram na enrascada política? A irada sentença da rainha na condenação de Tiradentes (forca) e dos demais literatos (degredo) é um achado de tensão, demência e agudo realismo — é aí que o documentário encontra a poesia, que a crueza dos autos se interligam com a alta poesia de Cecília.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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