As Transformacoes e o Ciclo
Diegues se esfor?a por caracterizar a decadencia dos engenhos de cana-de-a?ucar no Nordeste brasileiro
Tio Júlio, um velho coronel nordestino, paralítico numa cadeira de rodas, exclama para seu sobrinho, o coronel Aureliano: “Que tempos são esses! Acho que vêm por aí dias piores que os da cólera de 1856!” Na cólera de 56 do século XIX fora trazido para casa o corpo morto, de cólera, do pai de tio Júlio. As cenas dos diálogos entre Júlio, à beira da cova, e Aureliano, ainda com força para encarar os tempos, situam-se lá pelo início de Joanna Francesa (1973), um dos mais belos filmes do brasileiro Carlos Diegues.
Num determinado momento dos anos 70 do século XX, Diegues se preocupou com estudar, com seu cinema, as transformações da sociedade brasileira e as confluências dos ciclos. Depois de Joanna Francesa, Diegues filmou Xica da Silva (1976), captando a decadência das relações entre um senhor branco e uma negra um pouco escrava, um pouco objeto de desejo a partir das próprias alterações na costura social, um pouco senhora de tudo na fonte dos desejos que provocava. Mais adiante, em Chuvas de verão (1978), aproximando-se do subúrbio, Diegues mostrou a invasão do urbano para dentro do estado antigo de um subúrbio carioca: a desapropriação de locais privados no fim do filme simbolizava isto. Em Joanna Francesa, ainda voltado para temas globais que o cineasta abandonaria a partir de Chuvas de verão, Diegues se esforça por caracterizar a decadência dos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro, o ponto de transformação do coronelismo arcaico: na cena em que tio Júlio expõe seu pessimismo para o sobrinho, há um navegar da câmara (tão sombrio quanto as palavras de tio Júlio) pela paisagem já decadente e em escombros de tais engenhos —um fogo morto, como diz tio Júlio, e através desta expressão da personagem o filme pula um pouco para a literatura muito nordestina de José Lins do Rego.
Na verdade, Diegues abre Joanna Francesa com uma sequência de certo êxtase de viver. Passa-se num bordel. Joanna, a francesa do papel-título, está cantando, dançando, insinuando-se num cenário de sensualidade refinada. Ela é a dona do estabelecimento. Logo pelos diálogos sabemos que ela é amante de Aureliano, um coronel nordestino cuja mulher está para morrer. O bordel é em São Paulo, a capital. Joanna insta com Aureliano para levá-la junto para Santa Rita das Alagoas, antes mesmo de Das Dores, a mulher legítima do coronel, falecer. É o que se dá. No interiorzão Diegues encena o rito de morte de Das Dores e a ascensão de Joanna, a estrangeira, naquelas terras. E trilha o caminho de Aureliano. Nestas pegadas nunca escapa a Diegues o sentido da decadência de um tempo histórico, desde a pintura de um bordel que se desmaia em suas cores na abertura da narrativa até as mortes de Aureliano e Joanna mais para o fim.
Jeanne Moreau, uma estrela internacional em seu ponto de maturidade, dá o gabarito de estima ao filme de Diegues. Mas a grande intérprete de filmes como A noite (1960), do italiano Michelangelo Antonioni, e Os amantes (1958), do francês Louis Malle, para além de ter sido um signo sexual para uma antiga geração de adolescentes que hoje até já morreram, é uma atriz de recursos extraordinários. Ela parece divertir-se em cena, certo, especialmente nas sequências em que monta no ator negro Eliezer Gomes, com uma carga de erotismo sutil e agudo, mas compõe sua personagem com a criatividade e a grandeza de sempre. O que muito ajuda o cinema de sensibilidade de Diegues neste filme definitivo.
Demais, o elenco está recheado. Carlos Krober é um Aureliano de estudada composição. Rodolfo Arena é uma das faces básicas do cinema brasileiro da época. Há outro francês em cena: Pierre Cardim vive Pierre; Cardim foi um famoso estilista, era amigo de Jeanne e se diz que, embora fosse homossexual, chegou a ter relações sexuais com a Moreau. Na versão brasileira, Jeanne Moreau foi muito bem dublada por Fernanda Montenegro, embora eu preferisse ouvir a voz original de Jeanne.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br