Rebuscar o Ponto-de-Vista
Enclausurado não perde a pose clássica de McEwan e está longe de estabelecer as transformações de pontos-de-vista de Machado de Assis ou Kafka
O inglês Ian McEwan é um autor bastante clássico. Suas invenções narrativas são filigranas classicistas. É como olhar às vezes um velho trem repintado, mas cujas sutilezas de repintura podem aqui e ali apaixonar, por um achado da frase ou engenho da montagem de atrações ao modo literário mesmo. Ele esteve no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre um ano destes e falou de seu romance, Enclausurado (Natshell; 2016); disse que o narrador de seu livro era um feto, mas um feto seria algo muito comum ainda, por isso seu feto seria Hamlet.
Na verdade, Hamlet aparece na epígrafe de Enclausurado. Depois não o vemos mais citado. Mas a sombra da personagem de William Shakespeare é forte ao longo de todo relato. O ponto-de-vista inusitado e aparentemente inverossímil não é novo na ficção. No cinema, é claro, estes recursos abundam e o mais das vezes se tornaram fórmulas vazias. Na nobreza da literatura, a brasileira vê esta adoção num de seus romances-pilar: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis. É um romance em que o narrador é um morto. O tcheco Franz Kafka transforma seu narrador, no início de sua novela A metamorfose (1915), num monstruoso inseto. Tanto o defunto de Machado de Assis quanto o inseto de Kafka foram homens: são ex-homens. O narrador de McEwan é um pré-homem; nascerá, será homem. “Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro duma mulher.” Estaria a misoginia hamletiana presente nesta oração quase despretensiosa?
O drama do feto-narrador: dentro da barriga da mãe, o ser vê, ou melhor, percebe o que se passa do lado de fora, o que o espera no mundo. Seu tio, irmão de seu pai, é amante de sua mãe; seu pai é um simples corno cujo assassinato é tramado pelo casal adúltero. O mais incômodo para o feto é sentir a genitália de seu tio traidor roçar-lhe a cabeça em formação. Um Hamlet em saturação pornográfica. Um extrato sardônico do classicismo de McEwan.
Enclausurado não perde a pose clássica de McEwan e está longe de estabelecer as transformações de pontos-de-vista de Machado de Assis ou Kafka. Faz as suas concessões à modernidade: o que explica em parte seu grande sucesso. Mas não deixa de ser uma narrativa feita de uma sensibilidade não muito comum no meio de leitores que se destinam a desfrutá-la. Em sua revisão dum assunto shakespeareano, McEwan tem poder de inovação suficiente para interessar para além de leituras rápidas e descartáveis. Contemporaneamente aos descalabros do século XXI, McEwan vai substituir o silêncio do resto de Shakespeare pelo caos restante atual. “O resto é caos.” Esta é a última frase. A penúltima é: “primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado.” Diante dos trágicos do cotidiano, pensa-se mesmo que esta ordem (tristeza, justiça, significado) é a ordem mesma do pensamento.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br