As Analises Cortantes de Santiago
A mestria do olhar literario de Silviano Santiago torna a habitar o leitor, com este raro sentimento de objeto raro
A mestria do olhar literário de Silviano Santiago torna a habitar o leitor, com este raro sentimento de objeto raro, em seu novo ensaio, Fisiologia da composição; gênese da obra literária em Graciliano Ramos e Machado de Assis (2020). Como diz a extensão de seu título, o objeto das lucubrações de Santiago são a literatura de dois específicos escritores brasileiros, Graciliano e Machado. Na obra de Machado, avulta a decomposição que lhe faz o ensaísta, de um dos romances finais do romancista carioca, Esaú e Jacó (1904), considerado como um livro-hóspede de texto bíblico; mas Santiago aqui e ali divaga por outros campos machadianos como elucidação. No universo de Graciliano, o foco central são suas Memórias do cárcere (1953), obsessão tão grande dos interesses literários de Santiago que ele chegou a escrever um fictício livro de memórias de Graciliano mimetizando o estilo do alagoano, Em liberdade (1981) é, por assim dizer, e para valer-me da terminologia de Santiago, um livro-hóspede de Memórias do cárcere, algo como uma continuação que Graciliano teria delegado a Santiago fazê-lo, umas memórias da liberdade, depois de ser solto. Assim se vê que, partindo de Machado e de Graciliano, de Esaú e Jacó e de Memórias do cárcere, Santiago navega por outros autores e também outros livros, de Machado, de Graciliano e de outros.
“Se oprimido pelo estilo alheio, caso de Em liberdade, o corpo do escritor alagoano se mexe interior duma forma-prisão, em quase tudo semelhante às propostas pela sintaxe e o Dops.” Santiago, analista agudo de literatura, penetra no interior de suas criaturas-objeto. Ele o fez na sutileza da construção romanesca: Graciliano visto e transcrito em Em liberdade, Machado visto e inserido em Machado (2016; um romance). Em Fisiologia da composição Santiago assume o ensaio oculto em seus romances de escritores; assim como o fizera, em torno de Guimarães Rosa em Genealogia da ferocidade (2017).
Mesmo o ensaísta, é capaz de desnudar-se: “personalmente”. “De maneira nítida e (não escondo) egoísta, tento alicerçar, com a ajuda do poeta francês, o modo como Em liberdade, uma criação pretensiosa e original, se encaminhou para se hospedar teoricamente nas Memórias do cárcere, obra-prima da moderna literatura brasileira.” Leitor arguto, Santiago relê —tanto em seus ensaios quanto em seus romances— os modos de escrita ao longo das eras. “A oração católica é a forma-prisão de que se vale o poeta para escrever o poema numa perspectiva de comportamento libertário e transgressor.”
Vasculhando objetos raros, a raridade que é Santiago revela seu fascínio pela técnica de encenação em abismo dum romance tão à margem de tudo como Os moedeiros falsos (1925), do francês André Gide, um dos mestres de Santiago. Certo: “o romance brota, não se compõe.” Paradoxo: há uma fisiologia da composição, posterior ao brotar. Cinéfilo, como sabemos, por exemplo, de Mil rosas roubadas (2014), em algumas alusões textuais, Santiago põe à deriva na Fisiologia nos termos das personagens de Esaú e Jacó, puxando a aba do cinema: “E o segundo [Nóbrega, personagem contraposta à do conselheiro Aires], à semelhança de Mr. Arkadin, de Orson Welles, tem o futuro garantido na perseguição e no assassinato de todas as pessoas amigas que o conheceram no passado.”
Naturalmente, o corte literário, depurado e refinado, vai ter seu profundo desvio antropológico. “Existe expressão mais falsa e ridícula que as Capitanias hereditárias?’ Leitor do francês Jacques Derrida, Santiago sabe aplicar certas lições vagas à nossa realidade: literária e social. Aquilo que ele diz de Machado de Assis lhe cabe: “dramatizar o movimento em si.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br