Um dos Mais Duros Filmes de Chabrol

Um Assunto de Mulheres parece crescer com o passar dos anos

14/11/2023 17:55 Por Eron Duarte Fagundes
Um dos Mais Duros Filmes de Chabrol

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Claude Chabrol não tem o rigor político-estético de Louis Malle ou aquele outro rigor estético-literário de Éric Rohmer, dois outros cineastas franceses de sua geração com os quais ele divide uma tendência de modernização do clássico de filmar, contrapondo-se às experimentações de linguagem de outros realizadores ligados à nouvelle vague, como Jean-Luc Godard, Alain Resnais ou mesmo o François Truffaut dos anos iniciais. Neste aspecto a dureza de linhas de Um assunto de mulheres (Une affaire de femmes; 1988) é uma das mais fortes na filmografia do diretor; desde a fotografia de Jean Rabier (que fizera um trabalho semelhante numa obra de Chabrol rodada praticamente ao mesmo tempo, O grito da coruja, 1988, a partir dum romance policial de Patricia Highsmith), passando por alguns desfocados movimentos de câmara e amparando-se em mais uma extraordinariamente desglamurizada interpretação da já estrela francesa Isabelle Huppert, Um assunto de mulheres se põe muito como uma evocação de um cinema à margem, a despeito de suas origens literárias e clássicas.

Ora cínicos e pagãos, ora dotados de uma certa inocência e de uma busca religiosa contraditória e irrealizada, tanto a personagem central, Marie, quanto o filme de Chabrol navegam por obscuras ambiguidades a que os atributos (de Chabrol) de cronista de costumes à Balzac  se esforçam por dar objetividade e lucidez. Marie, composta com absoluto desembaraço cênico por Isabelle desde as descontraídas imagens iniciais entre danças e os filhos pequenos até as perversamente delirantes cenas que vão fechar a narrativa, é uma mulher francesa comum sob o regime de Vichy, na França do nazismo, do colaboracionismo, da matança de judeus durante a II Guerra Mundial; com o marido na guerra, ela sofre maus bocados para criar seu casal de filhos. Até que um belo dia, indo a ajudar uma vizinha que quer abortar, descobre um filão para ganhar dinheiro: fazer o aborto em outras mulheres. A vizinha a recompensa com um presente. Então descobre que a profissão clandestina de aborteira pode ser uma saída para seu impasse financeiro; e passa a fazer um aborto atrás do outro, mediante pagamento; a fauna feminina é um retrato social de época, a mulher que tem sua gravidez indesejada incluindo-se solteirice, crianças em excesso, o marido longe há dois anos sendo ela engravidada por um homem ao acaso, Marie presta seu serviço à causa feminina à sua maneira: aí a personagem se arrima em seu cinismo e em sua inocência. Mas é um cinismo e uma inocência que não impedem a extrema perversidade das almas e das situações. Delatada pelo próprio marido, indignado com a infidelidade da esposa e com o fato de Marie condescender com o caso que o companheiro mantém com a empregada (estimulado por Marie desde o início), a aborteira é presa, julgada e condenada à guilhotina, um aparato de fundo medieval premente na Revolução Francesa e ressuscitado pelo neojacobinismo de Vichy; horas antes de ser decapitada, em planos notavelmente tensos, com a interpretação de Isabelle em êxtase, surge na boca da estrela francesa a Ave-Maria profana que tanto escandalizou os cristãos da época: “Je vous salue, Marie, plein de merde, le fruit de vos entrailles est pourri.” (“Eu vos saúdo, Maria, cheia de merda, o fruto de vossas entranhas é podre”). Alguns anos antes, Godard fizera Je vous salue, Marie (1985), e não se pode deixar de pensar que a boca que expele a primeira oração do curto período blasfemo  alude a Godard, companheiro de Chabrol, em muitas irreverências dos anos 50 e 60.

Entre os papéis secundários, salta-nos a presença de Marie Trintignant fazendo uma descolada prostituta que faz amizade com Marie, a criatura de Isabelle. Esta criatura, Lucie, permite à Trintignant uma atuação tão empostada quanto natural; um achado cênico. E também François Cluzet e Nils Tavernier, respectivamente nas peles do marido e do amante de Marie, têm desenvolvimentos agudos.

Como se sabe, Chabrol é balzaquiano até a medula. Observando-se de perto, Marie é uma pré-Bovary cuja forma cinematográfica o diretor e sua atriz trariam para o cinema três anos depois; ocorre que no cinema Chabrol não é um estilista como Flaubert, e suas fêmeas estão mais na linha desossada das histórias de Balzac. Em Um assunto de mulheres há um coronel Chabert, um procurador de Estado no tribunal que julga Marie, sendo uma natural alusão a uma das mais conhecidas personagens de Balzac.

Voltando à associação de Marie, a aborteira, com Lucie, a meretriz, a quem Marie aluga quartos para programas, é a própria Marie quem, de novo entre ingênua e cínica, mostra à sua amiga profissional do sexo que ambas são parecidas e fazem coisas à margem da lei. Marie faz abortos, Lucie se prostitui. Ao redor, judeus são enviados para os campos de concentração. E os juízes mandam aborteiras e prostitutas para as prisões e aquiescem (ou colaboram) com o extermínio de judeus. A crítica de Chabrol ao estado de coisas não é tão lúcida quanto a de Malle; e Chabrol namora tanto o amoral (a Ave-Maria profana) quanto um escondido moralismo (Marie tem algo de vítima culpada, ambígua, e sua punição está, claro, no inevitável, a guilhotina). Resta dizer: “Eu te saúdo, Maria, o ventre podre cheio de merda.” Cru e desesperado, Um assunto de mulheres parece crescer com o passar dos anos. E os tempos sombrios o fazem um filme mais que necessário.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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