Ha a Poesia
Ha a poesia. Apesar dos tempos duros, ou prosaicos. Como ela se estabelece em A poesia que ha?
Um estudo da produção poética de André Caramuru Aubert pode levar o leitor aos impasses do conceito de poema nos dias de hoje. A poesia que há (2023) é seu quarto livro em versos. E traz, em todos os seus movimentos, como acontecia aos anteriores, sua consciência do ofício de escrever em versos nas estranhezas, e também nas entranhas, de um indivíduo do século XXI.
André é também romancista. Com a consciência de um romancista. A transposição de um tipo de escrita para outro permite ver as duas consciências —a do poeta e a do ficcionista— em movimento. Translação e rotação. Mas ele não escreve romances poemáticos (o adjetivo foi cunhado pelo crítico Otto Maria Carpeaux no prefácio de um livro do guatemalteco Miguel Ángel Asturias) , como Clarice Lispector (A paixão segundo G.H., 1964) ou James Joyce (Finnegans wake, 1939). Mas o espírito estético de André pode ser muitas vezes essencialmente poético. Talvez a natureza de seus achados derive, em seus romances, de sua alma de poeta. Será que toda arte deriva da poesia? As diferenças materializam-se —às vezes de forma clara, às vezes mais sutilmente— nos instrumentos de linguagem. Onde as apanhar? Usando um termo fora de moda, especialmente em sua literalidade mística, André faz um pouco como um demiurgo da palavra: porém sem o misticismo, com a gravidade ali entre a sensibilidade e o cerebral.
Há a poesia. Apesar dos tempos duros, ou prosaicos. Como ela se estabelece em A poesia que há? Em cada verso o conceito de poema é uma busca: instintivamente poética. Até chegar àquele conjunto de frases (versos misteriosos e provocativos) de “versos longos, versos curtos”: “todos sabem que há poemas de versos longos, às vezes tão longos que acabam por invadir as linhas de baixo para acabar classificados como poemas em prosa, quando na realidade, o que são , são poemas mesmo, e aí o desafio para os definidores é definir o que é um poema, ou seja, o que faz com que um conjunto de palavras, escritas sob um implacável metrômono num determinado ritmo, de uma determinada maneira, com um determinado estilo, sejam classificados como linguagem poética (ou discurso poético, se preferirem), mantendo-os à parte das linguagens romanesca, jornalística, jurídica, médica, publicitária, amorosa, cotidiana, e até mesmo da linguagem escrita na parte de trás daquela carroça puxada por um ser humano, um ser humano como você e eu, nas ruas de uma grande cidade brasileira como são paulo.” A mente do leitor da poesia de André Caramuru Aubert está inteira captada nesta aventura metalinguística de um parágrafo poético. E transcende a leitura do momento para chegar às leituras diacrônicas, que vão daquilo que guardamos no cérebro indo das métricas de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo à pedra no meio do caminho (tinha uma pedra) de Carlos Drummond de Andrade. Cada época define a poesia que há. O certo é que há a poesia —bem falada, mal falada, geralmente incompreendida— em qualquer época. Ela nasce no coração mas deve ser transformada numa forma para ser um poema.
Em seu primeiro livro de poemas, outubro/dezembro (2015), a dedicatória: “Para Clélia, no dia do seu aniversário”. E os versos que abrem o livro evocam: “No seu vigésimo segundo aniversário eu escrevi um poema para você, / lembra?” A poesia que há traz a dedicatória: “Para Clélia, com amor, no dia do seu aniversário”. A cada aniversário da amada, pode a literatura de poesia receber este gesto do poeta: o gesto amoroso, para com o ser a seu lado e para com as palavras. Rotação e translação. “porque tudo isso são verbos, e os verbos são meus / desde o princípio são meus”.
Tradutor habitual de poemas para o jornal “Rascunho”, autor de um romance que usa o estudo de poesia como fonte narrativa, Poesia chinesa (2018), André, o poeta, não se confunde propriamente com o estudioso de poesia que ele também é. Seus versos logram achar o lugar da poesia, algo que está mais no instinto das palavras que em sua razão. “a poesia que há no que a pele sente quando sente / quando há nela outra pele”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br