A Fase de Meios Tons de Chabrol
Na filmografia do realizador Claude Chabrol, O grito da coruja tem uma posicao intermediaria e raramente eh citado
Adaptando a ficcionista americana Patricia Highsmith em O grito da coruja (Le cri du hibou; 1987), o cineasta francês Claude Chabrol aproxima-se na verdade do universo de filmar do inglês Alfred Hitchcock. Com a fotografia nebulosa e desglamurizada de Jean Rabier e pondo em cena personagens comuns que aos poucos puxam no cotidiano uma anormalidade trazida com um certo sentido natural ou espontâneo, Chabrol executa, em O grito da coruja, sem grandes voos, meio entre as árvores como uma coruja que a espaços pia discretamente mas vem a assustar aqui e ali, sua habitual crônica dos delírios suburbanos dum grupo de criaturas francesas que ele tanto estima filmar.
Na filmografia do realizador, O grito da coruja tem uma posição intermediária e raramente é citado. Não me lembra que tenha sido exibido nos circuitos comerciais brasileiros. Pela mesma época, um outro Chabrol, também de meios tons nas imagens, Um assunto de mulheres (1988), fez mais barulho entre os cinéfilos; primeiramente, trazia no papel central uma estrela já bastante conhecida, Isabelle Huppert; depois, seu assunto era explosivo, a dubiedade moral da sociedade pela lente duma aborteira em tempos de guerra, trazendo a blasfêmia da oração no fim do filme, uma releitura da Ave-maria: “Ave Maria, cheia de merda, podre é o fruto do teu ventre”, isto pela boca duma estrela de cinema com penetração nos sacrossantos lares católicos; Um assunto de mulheres teve talvez sua primeira exibição no Brasil no FESTRIO/88, em novembro de 1988, dando-se que este comentarista lá se encontrava. O grito da coruja não tinha essas bolas todas para sair de sua casca. Mas ambos os filmes se inserem numa ironia marginal que um diretor do prestígio de Chabrol se permitia.
O triângulo amoroso de O grito da coruja é precário. Patrick e Juliette estão noivos; a câmara observa com distanciamento nas primeiras imagens as aproximações afetivas e físicas entre eles. Aos cenários interiores pequeno-burgueses as sombras opacas das árvores e das ruas noturnas indicam a ameaça exterior. É dentre estas árvores e ruas que surge a presença que perturba, Robert, o homem que vem a envolver de maneira estranha a Juliette, e vai criar as situações criminosas encenadas. Mathilda May, a intérprete central de O grito da coruja, nunca chegou a ter o estofo cênico de Isabelle Huppert, habitual figura do universo de Chabrol e que brilhou de Violette Nozière (1978), sua estreia sob Chabrol, a A comédia do poder (2006), o penúltimo filme do cineasta falecido em 2010; mas ainda assim o desenvolvimento da personagem de Mathilda na tessitura dramática tem um perfeito funcionamento em O grito da coruja, que, se está longe de certas forças cinematográficas que Chabrol atingiu em O açougueiro (1970) e A mulher infiel (1969), preenche uma parte de nossa satisfação com aquilo que sempre se pôde esperar do que ele soube trazer, com particularidade, para o cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br