Os Azares de um Burro
Um pouco filme ecologico e em favor dos animais, EO vai mais alem
O burro que cruza pelos cenários de EO (EO; 2022) sofre as adversidades do mundo contemporâneo, habitado por pessoas cujos modos de ação determinaram o tipo de universo em que vivemos: frios, de humanidade relativa. Dirigido pelo veterano cineasta polonês Jerzy Skolimowski (no seu currículo há um roteiro para um antigo Polanski, A faca na água, 1962), EO traz sua clara inspiração de A grade testemunha (no original, Au hasard Balthazar; 1966), do francês Robert Bresson. Um burro passa pelas mãos de várias pessoas comendo o pão que o diabo amassou; em Bresson se resume a diversos locais de comunidades rurais na França; em Skolimowski os cenários se amplificam, cruzam a Europa, o burro começa como uma atração de circo (Lola Montès, 1955, do austríaco-alemão-francês Max Ophüls?) e vai diversificando o olhar pelas mais inusitadas situações de nossos dias, misturando-se ora com agitados torcedores de futebol, ora com seus próprios afins, animais de sua espécie ou outras espécies. Apesar desta referência transparente que o polonês presta ao genial diretor francês, EO difere bastante deste seu antigo modelo narrativo em que o périplo de um burro (um animal que não homem) é um elemento central. No lugar do misticismo cristão de Bresson e de seu rigor formal cheio de ascese estética, o que o espectador depara em EO é uma visão de mundo nada fechado na introspecção da personagem (mesmo em se tratando dum bicho não-humano) e uma abertura para experimentações de estilo que, ainda adotando um certo rigor formal, desorganiza o humanismo clássico em que Bresson estruturou sua obra-prima.
Todavia, como em Bresson, há uma garota, o ser humano mais afeiçoado ao burro, Kasandra (Sandra Drzymalska, em composição notável); ela é que era sua dona no circo, no início, e o bicho está sempre querendo voltar para ela. O trajeto áspero e sofrido do burro é filmado por Skolimowski em planos muitas vezes escuros, que se aproximam dos sofrimentos físicos de EO com pudores, porém capazes de marcar no espectador uma ponta de angústia, a despeito da ternura de filmar do realizador. Um pouco filme ecológico e em favor dos animais, EO vai mais além, vai à raiz do humanismo a que uma arte como o cinema pode aspirar. E em momento algum traz conformismo e lamentações para as durezas de sua história: nisto, e só nisto, é bressoniano.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br