O Ultimo Suspiro Cinematografico de Bunuel
Um dos artificios c?nicos que Bunuel usa com muita naturalidade neste filme sao as duas atrizes para viverem uma so personagem
É o testamento do cineasta espanhol Luis Buñuel. É seu último suspiro. Sua derradeira canetada em imagens em movimento. Esse obscuro objeto do desejo (Cet obscur objet du désir; 1977) apresenta aos admiradores de Buñuel sua maturidade estética. De fato, o surrealismo e suas obscuridades dão suas notas: inspirado no romance La femme et le pantin (1898), escrito por Pierre Louÿs, o roteiro, segundo conta o corroteirista Jean-Claude Carrière, nasceu em parte dum sonho de Buñuel, no sonho um indivíduo carrega um estranho saco de estopa às costas. No filme o cineasta reproduz esta imagem de seu sonho mostrando este homem com o saco, este figurante da imagem cruza na rua com o casal central da narrativa; mais adiante no filme, Mathieu, o velho burguês lascivo, em magnífica composição de Fernando Rey, apanha o mesmo saco num banco diante do mar e o põe às costas, antes de se pôr a caminhar com Conchita, a jovem bem-amada de seus desejos. Esta imagem de Rey com o saco às costas, rápida como aquela da personagem do homem que era só imagem, se liga à imagem anterior do homem com um saco às costas, pois é somente isto, estranho mas objetivo: um homem com um saco às costas. Este surrealismo de encenação é, todavia, depurado por Buñuel, chegando mesmo a um despojamento clássico em Esse obscuro objeto do desejo.
Um dos artifícios cênicos que Buñuel usa com muita naturalidade neste filme são as duas atrizes para viverem uma só personagem, alternando-se ambas nas cenas: a francesa Carole Bouquet e a espanhola Angela Molina dividem a mesma personagem, Conchita, a virgem cruel, que se diverte com o velho burguês; Carole traz suas durezas de linhas, muita rigidez de composição, enquanto Angela compõe um temperamento mais amanteigado e como se desmanchando aos ingênuos contatos físicos com Mathieu (em francês, pois em espanhol é Mateo). Nascendo como uma brincadeira visual de Buñuel para com as percepções do espectador, esta duplicidade de intérpretes para uma personagem complexifica ainda mais a natureza psíquica das relações em cena.
Carole e Angela se alternam bastante ao longo das cenas. E há um jogo curioso de aparições dentro duma mesma sequência. No início do filme Mathieu joga água na cabeça de Conchita, uma jovem amante a quem supõe-se ele estaria abandonando. Quem está na cena é a atriz Carole. No fim do filme Conchita entra no trem e despeja água na cabeça de Mathieu: aqui a personagem de Conchita está na pele de Angela. Na mesma sequência: quem entra num quarto com Mathieu é Angela representando Conchita; ela vai ao lavatório trocar-se, e quem volta como Conchita é Carole. São soluções postas aparentemente ao acaso mas que, examinadas com mais atenção, podem ter explicações mais racionais do que se pensa, ainda que o nascimento das soluções seja instintivo, como requer o preceito surrealista.
Esse obscuro objeto do desejo é construído como uma auto-história que Mathieu conta a alguns passageiros de um trem Sevilha-Paris num compartimento que dividem na viagem. Entre estes ouvintes, uma mãe com sua filha pequena e um anão. É a criança quem faz a pergunta que vai detonar o processo de contar de Mathieu; a ingênua curiosidade infantil, sem peias na língua, é quem empurra o carro narrativo para a frente, depois guiado por Mathieu e seus jogos com a instável donzela Conchita. A menina questiona Mathieu porque, lá no início do filme, jogou água na cabeça duma moça. Então por aí Mathieu resolve contar sua história para explicar-se a todos.
No seio de sua história —psicológica e surreal— Buñuel adiciona um contexto de época, o terrorismo dos anos 70. E o faz sem perder sua profunda elegância de filmar. No começo do filme, Mathieu, ao chegar ao carro, presencia à distância um desses atos de terror que a câmara descreve de maneira muito objetiva: alguém que parece um figurão da política ou um industrial chega a um carro e manda o motorista dirigir para uma casa bancária; ao injetar a chave na ignição e virá-la, o carro explode. Na cena que encerra o filme, Mathieu e Conchita, após contemplarem uma mulher que costura um tecido claro (bege-branco), saem pela rua a caminhar, e uma bomba explode atrás deles: matando-os? Antes deste plano final, como se disse, as personagens contemplaram o misterioso plano, através duma vitrine, duma mulher que enfiava a agulha num tecido e passava a linha. Pode-se pensar em Machado de Assis e seu conto Um apólogo, onde, no fim, um alfinete dá a lição à agulha que conduz a linha: “Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: —Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém: onde me espetam, fico.” No caso das criaturas de Buñuel elas passaram o filme todo alternando-se nos papéis de agulha e linha, mas no último gesto ficaram espetadas como um alfinete: entre chamas. Um apólogo de Luis Buñuel como o último suspiro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br