Desamor e Morte na Espanha Franquista

La Madriguera é um filme de delírio intimista que ainda mantém uma certa extroversão surrealista à Buñuel

21/02/2017 22:04 Por Eron Duarte Fagundes
Desamor e Morte na Espanha Franquista

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Costuma-se dizer que o cineasta espanhol Carlos Saura teve sua temporada de gênio quando, na Espanha sob o regime do ditador Francisco Franco, teve de usar de criatividade para driblar a vigilância da censura. La madriguera (1969), um de seus filmes nunca exibido comercialmente no Brasil, é um exemplo da grandeza do cinema que ele então fazia.

Em La madriguera Saura vai centrar-se no questionamento do casal burguês dos anos 60 e seus esgotamentos afetivos. Mas, curiosamente, o jeito como Saura aborda seu assunto difere bastante daquele sombrio intelectual de um certo cinema europeu da época, cujos ápices estéticos parecem ser o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman. Talvez um pouco desta diferença nasça da sombra surrealista de Luis Buñuel que paira sobre todo o cinema espanhol. No entanto, deve-se observar que acima de tudo a diferença cinematográfica de Saura vem de seu próprio gênio, duma personalidade única que, mesmo nos momentos de diálogos com outros mestres do cinema (Buñuel ou Bergman) não deixa de impor sua visão de mundo e sua estética particular.

La madriguera é um filme de delírio intimista que ainda mantém uma certa extroversão surrealista à Buñuel, pequenas loucuras de encenação que desafinam, provocativamente, o concerto íntimo da narrativa de Saura. Nos anos seguintes de sua filmografia, Saura foi depurando estes excessos surrealistas, até chegar ao supremo refinamento de Elisa, vida minha (1977).

Pedro e Teresa, os protagonistas de La madriguera, encenam algumas regressões de comportamento onde realidade, fantasia e metáfora se articulam diante das câmaras de Saura. O casal vive numa típica casa moderna madrilenha, mas as coisas se complicam quando a mulher herda os móveis duma residência onde passou a infância. A chegada destes móveis faz com que a mulher tenha suas regressões a um comportamento infantil; diante da crise relacional já vivida pelo casal, a transformação da mulher em menina acentua os problemas, estabelecendo uma difícil ponte entre a infância e a idade adulta. Em Cria cuervos (1976) as relações da infância com o mundo adulto são problematizadas por Saura com muita profundidade e depuração formal. O que torna a investigação de Saura em La madriguera um abeirar-se do patético humano é o fato de o psicodrama infantil ser vivido por uma atriz adulta comportando-se como uma menina; é uma ação doentia da imagem (doente) sobre o espectador.

Depois de várias idas e vindas, no fim de La madriguera a personagem da mulher, depois de ambos decidirem pela separação, simula um suicídio, na seqüência da discussão mata o homem (como faria a mulher em O último tango em Paris, 1972, do italiano Bernardo Bertolucci, a jovem burguesa matando o quarentão que a seduziu) e no plano seguinte ruma para dentro de casa (sobre um plano final da casa ouvimos um estrondo de tiro: ela se suicidou ou é uma nova simulação?). Trata-se, pois, de um filme de rara emoção, com a magia e a inteligência sensível de Saura coordenando todos os pontos duma narrativa exemplar.

Geraldine Chaplin, então esposa do cineasta, tem um de seus muitos grandes momentos nas mãos de Saura, ao viver com discrição e garra as alternâncias emocionais de Teresa. O sueco Per Oscarsson, ainda que dublado por Jesús Nieto, é uma composição exata, friamente rosselliniana de Pedro, o duro homem de negócios posto à prova das neuroses de sua esposa. Como era habitual nos filmes de Saura na época, uma aparente história dos problemas do casal do século XX insere cenas-chave para uma interpretação simbólica da sociedade espanhola franquista, como certas ações repressivas que ora a mulher despeja sobre o homem (fazendo-o de cão rastejante, por exemplo), ora (é mais comum) o homem assesta para a mulher (como quando ele, assumindo uma função paterna, bate-lhe no traseiro porque tirou más notas no colégio: a educação como fonte de repressões, eis uma visão daqueles anos autoritários).

A primeira vez em que li sobre La madriguera foi num texto do crítico gaúcho Tuio Becker, quando ele, analisando o filme brasileiro Eu te amo (1980), de Arnaldo Jabor, acusou o roteiro de Jabor de ser um pastiche da obra-prima de Saura. Na verdade, Eu te amo não esconde sua condição de pastiche de vários clássicos do cinema, de O último tango em Paris a O império dos sentidos (1976), do japonês Nagisa Oshima, fechando-se com um final conformista de musical americano; Tuio observa esta diferença entre a “ilusão” de Jabor e a “consciência lúcida” de Saura. Enfim, La madriguera, visto por mim neste alvorecer do século XXI, com tanto atraso, para além de suas excepcionais qualidades cinematográficas, mexe com meu próprio aprendizado de ver cinema entre o fim dos anos 70 e o começo dos 80. O cineasta Saura e o crítico Tuio Becker estão na linha de frente deste aprendizado.


(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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