O Ultimo Suspiro de Fassbinder
O alemao Rainer Werner Fassbinder fez de Querelle (1982) seu testamento cinematografico
O alemão Rainer Werner Fassbinder fez de Querelle (1982) seu testamento cinematográfico. Pouco depois ele se afogaria em barbitúricos para dar cabo duma existência tumultuada por uma sexualidade quase esquizofrênica e por inquietações artísticas que tem atravessado os anos ainda capazes de perturbar o observador. Fassbinder nos contamina por sua arte e com sua torturada liberdade de comportamento sexual. Querelle, seu último suspiro para uma câmara de cinema, não deixa de ser o autorretrato estético do cineasta; extraído duma novela de Jean Genet, Querelle de Brest (1947), o filme de Fassbinder encena a bissexualidade transbordante do marinheiro Querelle (a câmara enamora-se da beleza feminina do ator Brad Davis), cujas águas misturam o deboche amoral da cortesã Lysiane (uma Jeanne Moreau em grande forma, cantando “Each man kills the thing he loves”) e a rudeza primitivamente máscula de Hanno Pöschl (na trama, marido de Jeanne e amante bruto do jovem e belo amante de Jeanne).
Filmado em estúdio, buscando um delírio teatral nos espaços fechados e artificiosamente coloridos à maneira dum teatro subterrâneo e barroco, Querelle expõe tanto as ousadias do cinema de Fassbinder quanto alguns limites que podem cercar sua arte (especialmente na utilização de artifícios cênicos que estorvam sua capacidade narrativa em nome da beleza formal que em algumas partes de sua filmografia, como em Effi Brest, 1974, chegou à perfeição de achados cinematográficos). Misturando o teatral-experimental com aquilo que Fassbinder trouxe dos subterrâneos dos melodramas de Douglas Sirk (também alemão, mas que fez sua obra principal nos Estados Unidos nos anos 40 e 50), como Amar foi minha ruína (1946) e Palavras ao vento (1956), Querelle é um gesto final da vida e da arte do realizador, gemido que já fora ensaiado em seu filme anterior, talvez mais autêntico que este grito final, O desespero de Veronika Voss (1982). Fassbinder foi um artista-limite; e fez personagens-limite, em estado constante de fato desesperador: o Franz Biberkoff de Berlim Alexanderplatz (1980), a Veronika de Veronika Voss e este Querelle buscado em Genet.
Numa sociedade destrutiva, viver a homossexualidade, e por tabela o cinema homossexual, só pode ser turbulento e rangente como se vê em Querelle. Brad Davis, que interpreta no filme algumas das mais quentes e fortes cenas de sexo entre homens da história do cinema, morreu de AIDS em 1991; se disse dele o primeiro heterossexual a morrer da doença, mas nem o dado é certeiro nem a sexualidade (embora casado) de Davis foi dita às claras pelo próprio em vida. Numa ponta aparece o ator Robert Van Ackreren; ele chegou a dirigir alguns filmes duros e experimentais, um sub-Fassbinder, sem brilho, certo, já esquecido, ao contrário do que tem acontecido com o cinema do autor de Querelle.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br