O Anjo do Inferno

Fassbinder faz, em Berlim Alexanderplatz, um retrato antologico e impiedoso da sociedade da Alemanha de entre duas guerras

04/08/2015 15:41 Por Eron Duarte Fagundes
O Anjo do Inferno

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Depois de cumprir pena de quatro anos por ter assassinado sua companheira Ida, Franz Biberkopf está saindo pelo portão da prisão de Tegel. “Começa o castigo”, escreve o romancista alemão Alfred Döblin no início do segundo parágrafo de Berlim Alexanderplatz (1929), uma das obras mais tensamente revolucionárias da literatura do século XX. Começa o castigo (Die Strafe beginnt) é o título da parte I do filme Berlim Alexanderplatz (1979), rodado pelo alemão Rainer Werner Fassbinder a partir do texto de Döblin em treze partes e um epílogo inicialmente veiculado pela televisão germânica e algum tempo depois lançado nos cinemas para testar a inteligência e a cognição fílmica dos espectadores. E assim é; nada sabemos, no livro e no filme, dos possíveis sofrimentos e prazeres de Franz no cárcere, mas sabemos dos motins de sua vida anterior (a cena do assassinato de Ida é intersticialmente recapturada pela montagem de Fassbinder como um estribilho da perversidade, simulando pelos textos que acompanham as imagens uma fábula do mal) e acompanhamos desolados os espectros de punição em que quase todos os episódios da vida da personagem se convertem. Para Franz, o castigo está fora da prisão: está na sociedade, no convívio com o outro.

Fassbinder faz, em Berlim Alexanderplatz, um retrato antológico e impiedoso da sociedade alemã de entre duas guerras. À volta de Franz, move-se uma fauna perigosa, sobressaindo-se a figura de Reinhold, o outro eu de Franz, uma ligação interior e uterina entre os dois que se afunda em perversões sexuais (desde o momento em que Franz aceita as mulheres-sobra de Reinhold, até o assassinato por Reinhold de Mietze, talvez a mais amada e devotada em amor dentre as mulheres de que Franz dispôs), gira meio homossexualmente e vai perturbar-se na sequência final no inferno (o epílogo) onde Reinhold exibe uma coroa de espinhos na cabeça e Franz é meio que crucificado: pedaços do mesmo mal.

Franz tem a ingenuidade dos anjos, mas é um anjo infernal. Suas relações com as fêmeas humanas, mesmo repassadas de um certo calor emocional, são enviesadas: ele é sempre o cafetão delas, o homem que é sustentado pelos programas com outros homens que elas fazem. Isto surge naturalmente da vida de Franz, é natural e sem culpa, assim é, pensam ele e suas mulheres. Foi com Ida, a quem ele matou. Eva, que aparece no princípio meio esporadicamente e depois vai crescendo sua função junto ao protagonista (o fato de ser interpretada por Hanna Schygulla, musa e esposa do cineasta, converte a personagem quase num amuleto do filme), foi uma das prostitutas de Franz, virou sua amiga, apresentou-lhe sua grande amada Mietze e lá pelas tantas, por sugestão de Mietze, engravida de Franz como se o filho fosse de Mietze, que é estéril e depois morre assassinada por Reinhold.

Berlim Alexanderplatz, o filme de Fassbinder, apresenta uma das personagens mais cruas e todavia profundas da história do cinema. Mas em torno de Franz se movimentam as torpezas da sociedade teutônica, a demência que, anteviu o escritor Döblin, geraria o nazismo em seu ponto alto. Franz chega a usar no começo do filme a suástica: que é que tem isto, parece que ele pergunta a quem lhe questiona o gesto. “Aqui vou dizer o seguinte: minha profissão de médico levou-me com frequência ao contato com criminosos.”, anota Döblin num dos posfácios de seu romance. O lado realista da narrativa, sua autenticidade mesmo vem deste contato direto com o ser humano, não pela objetividade exterior, mas por um “vivendo junto, agindo junto, sofrendo junto” nas palavras do romancista. Mas a linguagem de Döblin mergulha nas alegorias, se deforma e se reconstrói. “O tempo todo aponta-se para Joyce”, não esconde o romancista. Fassbinder seguiu bem os episódios básicos da narrativa de Döblin, recriando assim em filme aquele universo humano e social que o escritor queria retratar, mas incrustou em sua linguagem visual aquelas rabugens fassbinderianas únicas, a claustrofobia própria duma ambientação cinematográfica e não desdenhou de certas desesperançadas características melodramáticas que o cineasta hauriu nos filmes clássicos de Douglas Sirk, como Palavras ao vento (1957) e Amar e morrer (1958). Ou seja, o Berlim Alexanderplatz de Fassbinder é um espelho alterado do romance de Döblin.

Antes de mais nada, é admirável a precisão com que os difusos e prolixos discursos indiretos do romance são feitos diálogos no filme de Fassbinder; estes diálogos recontam cinematograficamente a história do livro e acrescentam novos sentidos a esta história.

“Emilie Parsunke é o nome verdadeiro dela, mas prefere que a chamem de Sonja. Eva sempre a chamou assim, porque tem maçãs do rosto como os das russas.

—E Eva— diz a mocinha, implorativa—, Eva também não se chama Eva, ela também se chama Emilie, como eu. Ela mesma me contou.”

Este é um trecho do livro. Depois segue um discurso indireto. Onde Franz lembra que foi ele quem batizou Eva de Eva. E agora passa a batizar a nova namorada, que ele chamará “minha Miezeken”. No filme quem vive Mietze é Barbara Sukowa. O diálogo inicial Mietze/Barbara com Franz (vivido por Günther Lamprecht) capta todas as nuanças do texto de Döblin, seu vaivém irônico e sinuoso dentro das personagens, e vai além ao expor a inocência das personagens diante duma estudada inocência dos intérpretes. As coisas rolam e os primeiros vinte minutos do miolo da parte VIII do filme, quando Franz conhece Mietze, permitem a Fassbinder valer-se dum pesado neorromantismo que se aproxima da atmosfera de Effi Briest (1974), talvez o mais perfeito de seus filmes.

“Não há motivo para desespero. Até ter conduzido esta história a seu duro, terrível e amargo fim, ainda usarei muitas vezes estas palavras: não há motivo para desespero.” Döblin escreve estas linhas bem no início do “Sexto Livro” de seu romance. Franz Biberkopf jaz sob as rodas de um carro, mas não há motivo de desespero. Apesar da empatia do médico-escritor com seus seres, Döblin usa o distanciamento narrativo, o que se chamava na época uma nova objetividade influenciada pelos signos deformados do irlandês James Joyce. Fassbinder, ao contrário, usa a intensidade subjetiva, rente com o melodrama. A frase acima de Döblin é usada por Fassbinder, em voz-over, no filme. “Os socialistas não conquistam o poder político, mas o poder político conquistou os socialistas”, eis outra oração de Döblin que Fassbinder transcreve para seu filme. Ora pela voz-over, ora pelo uso de letreiros, ora pela reprodução em diálogos mesmo, Fassbinder sempre se volta para o texto de Döblin; mas o diretor nunca é fotográfico, sua montagem recria o correspondente cinematográfico do literário, a montagem que vem do movimento na junção dos planos, da escolha do que virá da página, da escolha do momento de inserir tal trecho (episódico ou verbal) na narrativa. “Aqui descreve-se o que é dor e sofrimento. Como a dor queima e dilacera. Pois foi a dor que chegou. Muitos descreveram a dor em poemas. Todos os dias os cemitérios contemplam a dor.” No Epílogo, que é a décima quarta parte, Fassbinder se debruça sobre a dor de Franz Biberkopf; como aconteceu com todas as suas grandes personagens, Franz é o próprio Fassbinder, e o ator Günther Lamprecht não deixa de adotar um jeitão Fassbinder. “Aqui descreve-se o que a dor faz com Franz Biberkopf. Franz não aguenta , entrega-se, se oferece à dor como vítima.” As disparatadas, desparelhas e incendiárias cenas finais num cenário de alegoria do inferno são o reflexo desta dor de Franz; o episódio final oscila entre o realismo descarnado do semidocumental anterior e a fantasia solta, de símbolos, a certos momentos as duas coisas se juntam, se confundem. É o delírio barroco do grande cineasta, exacerbado.

Desde aquela conferência inicial e epistemológica com judeus logo que ele sai da prisão, até o acerto de contas com várias criaturas no inferno encenado no final, a trajetória de Franz Biberkopf em Berlim Alexandetplatztem o toque de gênio de Fassbinder para a comandar. É um evento que merece ser visto e revisto, analisado e reanalisado por aqueles que não se conformam com a mesmice que muitas vezes se tem visto no cinema.

Eis abaixo como Fassbinder estruturou as partes desta sua gigantesca obra-prima, casando-se com o texto de Döblin e ao mesmo tempo apartando-se dele por conveniência cinematográfica:

Parte I: Começa o castigo (Die Strafe begginnt, 82 min)

Parte II: Como viver se não se quer morrer? (Wie soll man leben, wenn man nicht streben will, 59 min)

Parte III: Um golpe de martelo na cabeça pode ferir a alma (Ein Hammer auf den Kopf kann die Seele verletzen, 59 min)

Parte IV: Um punhado de gente nas profundezas do silêncio (Eine Handvoll Menschen in der Tiefe der Stille, 59 min)

Parte V: Um anjo da morte com o poder de Nosso Senhor (Ein Schnitter mit der Gewalt vom lieben Gott. 59 min)

Parte VI: O amor tem seu preço (Eine Liebe, das Kostet immer viel, 58 min)

Parte VII: Lembre-se: um juramento pode ser amputado (Merke – Einen Schwur kann man amputieren, 58 min)

Parte VIII: O sol aquece a pele, mas às vezes a queima também (Die Sonne wärmt die Haut, die sie manchmal verbrennt, 58 min)

Parte IX: Sobre as eternidades entre os muitos e os poucos (Von den Ewigkeiten zwischen den Vielen und den Wenigen, 58 min)

Parte X: A solidão abre fendas de loucura até em paredes (Einsamkeit reiBt auch in Mauern Risse des Irsinns, 59 min)

Parte XI: Conhecimento é poder e Deus ajuda a quem cedo madruga (Wissen ist Macht und Morgenstund hat Gold im Mund, 59 min)

Parte XII: A serpente na alma da serpente (Die Schlange in der Seele der Schlange, 59 min)

Parte XIII: O exterior e o interior e o segredo do medo do segredo (Das ÄuBere und das Innere und das Geheimnis der Angst von dem Geheimnis, 58 min)

Epílogo: Meu sonho do sonho de Franz Biberkopf, de Alfred Döblin: um epílogo (Mein Traum vom Traum des Franz Biberkopf Von Alfred Döblin: Ein Epilog, 111 min)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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