A Camara-Olho: Imagens Que Se Refletem
Em Effi Briest (1974) o cineasta alemao Rainer Werner Fassbinder interfere radicalmente em nossa maneira de ver um filme
O teórico russo Dziga Vertov dizia que “o olho submete-se à vontade da câmara e deixa-se dirigir por ela”. Em Effi Briest (1974) o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder interfere radicalmente em nossa maneira de ver um filme e torna câmara e olho espelhos complementares um do outro, auxiliares de uma narração cinematográfica tão nova em seu lançamento como hoje, neste princípio de século dominado pela tecnologia digital. Exibido há alguns anos na Mostra Fassbinder da Sala P.F. Gastal, numa cópia em 16 mm, esta realização extraída dum romance germânico de Theodor Fontane de 1894, é o ponto mais perfeito atingido pelo cineasta; ao longo de duas horas de projeção, somos embalados pelo rigor hipnótico de um espírito cinematográfico notável.
Rigor e despojamento, eis as chaves de Effi Briest. A maior parte dos planos utilizados por Fassbinder são fixos e estáticos; a possível teatralidade de seu cinema tem aqui um agudo senso de narrar em imagens, diferentemente do que ocorria em O machão (1968), um de seus trabalhos exibidos no ciclo. Os movimentos de câmara são poucos e imperceptíveis. Além do teatro, pode-se dizer que a linguagem de Fassbinder em Effi Briest está informada pela literatura; como num filme francês, mas de maneira densamente teutônica, as personagens estão sempre conversando (não há silêncios, os silêncios das obras do italiano Michelangelo Antonioni), o narrador-over se intromete seguidamente sobre as vozes-in, e os letreiros retirados do texto literário amiúdam. A música na faixa sonora é escassa e nunca chama a atenção sobre si por induzir a cena, numa contenção de recursos quase bressoniana. Assim se passam as duas horas de hipnose cinematográfica a que Fassbinder nos submete.
A principal interferência de olhar que Fassbinder oferece ao espectador é praticada com extrema simplicidade de execução. Nunca na história do cinema um realizador se valeu tanto de espelhos como elementos narrativos auxiliares num filme; os espelhos surgem a toda a hora, caracterizando pontos de vista diversos numa única tomada, e muitas vezes superfícies polidas ou cortinas de janelas simulam imagens espelhadas que dialogam com as imagens mais diretas da câmara. A habilidade de Fassbinder para expor este complexo jogo aparece de forma despojadíssima, nunca torturando o olho do espectador, que é assim como um espelho para a câmara, que vê primeiro e depois repassa ao olho.
Raramente um filme de época abdicou com tanta dedicação do barroquismo cênico como Effi Briest, cujas vestes e cenários evitam aqueles exageros característicos que existiam, por exemplo, em Querelle (1982), o derradeiro filme de Fassbinder inspirado em Jean Genet. Conto moral sobre uma alma caracteristicamente fassbinderiana, tão cheia de curvas e desesperos como Franz Biberkopf de Berlim Alexanderplatz (1980) ou Veronica Vos do filme homônimo (1981), Effi Briest é uma das obras mais criativas do cinema e cuja revisão sempre alucina o espectador.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br