O Feminino e a Religiao

Entre Mulheres traz muito de abstracao em sua historia

07/09/2024 04:19 Por Eron Duarte Fagundes
O Feminino e a Religiao

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Depois do introito em que o espectador vê uma jovem despertar com hematomas de um pesadelo em que homens demoníacos a teriam violentado (a cena do estupro é evocada mas não filmada), Entre mulheres (Women talking; 2022), filme que a realizadora canadense Sarah Polley extraiu do romance (inspirado em coisas de fato acontecidas) homônimo de Miriam Toews, mostra na tela um letreiro antes de começar verdadeiramente sua história: “What follows is an act of female imagination”, quer dizer, “o que se segue é um ato da imaginação das mulheres”. A oração traz sentidos que se bifurcam. As mulheres que se rebelam contra a violência sexual dos homens no filme são acusadas de inventarem coisas, possuídas por demônios durante o sono. E, no sentido crítico, a rebelião feminina é um ato de imaginação, sim, e das fêmeas.

Numa sequência final, sobre a imagem duma bebê, a voz-over da adolescente que narra certos trechos do filme, diz: “Your story be diferent from ours.” Assim esperam as mulheres que agem ao longo de Entre mulheres, que o nascimento duma nova menina interrompa a história de violência perpetrada pelos machos e estejamos diante dum novo ciclo. Estas palavras ditas no fim dialogam com as palavras escritas no início: a imaginação das fêmeas leva a uma outra realidade.

Entre mulheres traz muito de abstração em sua história. Não diz o lugar nem o tempo em que se passa a história. Sabe-se que o livro está ambientado na Bolívia no seio duma comunidade menonita, onde o fanatismo religioso conduz ao patriarcalismo radicalmente arcaico. O filme só aduz que se passa num lugar remoto, entre pessoas profundamente religiosas. As mulheres são incultas, analfabetas, mas têm a consciência despertada pela indignação mais aflorada de algumas delas. Um homem —um jovem—, por saber ler e escrever, na condição de homem, escreve as atas das reuniões; ele se apaixona por uma das mulheres. Ainda ali, a cineasta não desvia o rigor crítico de sua encenação: uma intensa meditação proposta como uma metáfora atemporal ou uma fantasia crítica, pois toda arte é, em seu fundo, uma espécie de fantasia, que pode ou não ter pés na realidade.

Álvaro Romão, escritor, cineasta e crítico português, anota com brilho e precisão de detalhes: “Uma menina-mulher acorda do sono noturno, um sono pesado, não sabe ela que foi obrigada a isso, drogada para se manter dócil, adormecida, boneco nas mãos do bonecreiro, num plano bonito, feito de cima, o corpo em toda a dimensão do ecrã, uma camisa-de-dormir sóbria, pudica, rendilhada, bordada, com desenhos iguais aos dos lençóis, a camisa-de-dormir levantada acima dos joelhos, as pernas flectidas, umas sombras nas pernas, nas coxas, talvez nódoas negras, talvez sangue, qualquer coisa fora do que seria normal.” Extremamente objetivo, Marco Antônio Bezerra Campos, cinéfilo porto-alegrense, antigo cineclubista da praça, observa: “Por exemplo, o que dizer quando duas meninas do grupo entrelaçam suas tranças, em um indicativo para resistir a barbárie. Ou as parábolas que a idosa conta tendo como personagens suas duas éguas”. Entre mulheres é assim: um destes filmes que mostram várias portas por onde se entrar.

Sarah Polley, uma diretora e atriz canadense de 44 anos, já tem estrada no cinema e em Entre mulheres ela entrega a confluência desta sensibilidade experimentada ao longo dos anos. Realizadora de Longe dela (2006) e uma intérprete-mirim em As aventuras do Barão Munchausen, de 1989 (então Sarah tinha nove anos), de Terry Gilliam, toda esta experiência de como expor o universo cinematográfico a partir dos deslocamentos dos atores por alguns cenários transparece nas maravilhosas aparições de todo o elenco (Rooney Mara, Claire Foy, Jenie Buckley, Judith Ivey, Sheila McCarthy, Kate Hallet, Ben Whishaw, Frances McDormand) nas criativas imagens de Entre mulheres.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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