Os Horrores da Religiao e da Religiosidade
O amor entre mulheres tem percorrido alguns outros filmes atuais que, a exemplo de Benedetta, buscam o lesbianismo de epoca
Por seu teor plástico na pintura de época, Benedetta (Benedetta; 2021) lembra outro dos mais bem sucedidos filmes do holandês Paul Verhoeven, Conquista sangrenta (1985). Os dois filmes tratam de tempos bárbaros, cheirando a ninhos medievais. Conquista sangrenta se ambienta no alvorecer do Renascimento, mas as personagens ainda não saíram dos costumes da Idade Média. Benedetta está um pouco além historicamente, no século XVII, mas os fatos que narra trazem a marca do eterno arcaísmo que sempre identificamos como medieval. Falamos da Idade Média como um tempo de trevas, mas já se diz que isto é historicamente incorreto. Na verdade, o homem nunca saiu desta escuridão: nem hoje nem em século algum. Benedetta expõe, sem concessões, os conflitos da religiosidade do homem, mostra nossa espiritualidade como uma região obscura e tortuosa; o que temos de mais doloroso parece nascer dali. O filme de Verhoeven está ambientado num convento italiano, entre freiras; em sua parte inicial a narrativa busca a veracidade do rito e da crença religiosas, a encenação adota um rigor místico, desde a reconstituição histórica por vestuários e cores, que aproxima Benedetta dos cineastas católicos, como o italiano Roberto Rossellini e o francês Robert Bresson. Ali, naquele meio, aos poucos, o realizador descortina os conflitos entre os instintos e a fé, penetrando por todos os lados no que temos de mais autêntico e assustador. Aos 83 anos, o cineasta segue fazendo um cinema caracterizado pelo inconformismo que conhecemos desde Louca paixão (1973).
Benedetta é uma adaptação do livro Soeur Benedetta, entre sainte et lesbienne (1987), de Judith C. Brown, em que se faz uma radiografia histórica da freira, depois beatificada, Benedetta Carlini. No início do filme já lemos que se trata duma obra inspirada em fatos que de fato aconteceram. Como estes fatos estão longínquos historicamente, ainda que Verhoeven e seu corroteirista David Birke se esforcem nos documentos de época, a margem de imaginação para a narrativa é bastante grande, em face das lacunas. Nestas lacunas, a arte de Verhoeven exerce sua constância crítica e seu engenho de filmar.
Realizado na França, onde também o trabalho anterior do cineasta, Elle (2016), tivera a acolhida do mesmo produtor de agora, o franco-tunisino Saïd Ben Saïd, Benedetta traz ambientações na Itália, que é onde se passa originalmente a história de Benedetta. O roteiro começou nas mãos de Jean-Claude Carrière, cruzou por Gerard Soeteman e foi parar nas mãos de Birke, o mesmo roteirista de Elle. O título inicialmente era outro: Sainte Vierge. Depois secamente virou Benedetta. Verhoeven aproveita a história do livro para mergulhar, de maneira profunda, nos aspectos do comportamento humano que interligam a religião e o sexo; e não descura observar como estes aspectos se mesclam num tema marcado pela irracionalidade da fé (abstrata) e a realidade circundante (concreta) da peste que então devastava boa parte do país e do continente.
O amor sexual entre duas religiosas, Benedetta e Bartolomea, nos interiores dum convento, é o centro do filme. Confinadas na hipocrisia dum espaço, o convento, que é tanto o templo de orações quanto de ações sexualmente transgressoras, e num tempo mediavalesco, as personagens se encontram e encontram seus corpos. A fé primitiva de suas mentes não impede este encontro com seus lados físicos, e quem sabe seja isto mesmo que as estimula a um gozo mais intenso por uma espécie de subterrânea provocação espiritual. Amor entre mulheres já trazia, naqueles anos recuados, uma natural provocação. Elas ferem também a postura da ética religiosa, perfurando a fé. Bartolomea toma duma escultura pequena de madeira da Virgem Maria (um presente que Benedetta recebera de sua mãe em pequena e trouxera junto quando chegara ao convento), a apara e a usa como objeto fálico introduzindo na genitália de sua parceira, visando a criar um gozo que se equivale em intensidade à presença de um homem entre elas. Estas cenas de erotismo formalmente extasiante tem, no cinema de Verhoeven, uma rara profundidade: o sexo diferenciado de Benedetta e Bartolomea atinge instantes enlevados cinematograficamente. Ao ser sublinhado pela ira inquisitorial do núncio vivido por Lambert Wilson, o amor entre religiosas se torna o ponto de inflexão da história. Para que a encenação do amor santo-lésbico de seu filme chegue à plenitude estilística, Verhoeven contou com a naturalidade de duas atrizes belgas, Virgine Efira na pele de Benedetta, Daphne Patakia como Bartolomea. Entre as aparições do time de apoio, a veteraníssima Charlotte Rampling revive seus grandes momentos no cinema, como uma abadessa que é testemunha implacável dos atos puros e impuros de Benedetta e Bartolomea.
O amor entre mulheres tem percorrido alguns outros filmes atuais que, a exemplo de Benedetta, buscam o lesbianismo de época. Ammonite (2016), de Francis Lee, passa-se em 1840 e relata o caso entre uma paleontóloga e a esposa de um colega cientista. Retrato de uma jovem em chamas (2019), de Céline Sciamma, se ambienta no século XVIII, debruçando-se sobre os enleios físicos entre uma pintora e sua modelo. Benedetta está no século XVII. Apesar da beleza estética dos filmes de Lee e de Sciamma, é no grande filme de Verhoeven que o espectador poderá topar os arranhões mais cortantes na meditação sobre os instintos humanos que o cinema estaria pronto para produzir.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br