Ciencia, Religiao e Morte no Seculo XXI

A Bencao capta algo do culto da morte que norteia alguns setores decisivos das sociedades deste principio de terceiro milenio da era crista

19/11/2020 14:18 Por Eron Duarte Fagundes
Ciencia, Religiao e Morte no Seculo XXI

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A bênção (2020) é uma série brasileira produzida e distribuída pelo Canal Brasil. A ideia que norteia a estrutura dramatúrgica do trabalho (a produção dum medicamento que retira da alma das pessoas o medo à morte, fazendo com que suas ações sejam determinadas pela ausência deste medo) é de Frederico Ruas, Leo Garcia e Pedro Harnes; há vários roteiristas ao longo dos episódios desta primeira temporada, onde a direção é dividida meio a meio entre Davi de Oliveira Pinheiro, diretor de Porto dos mortos (2011) e Emiliano Cunha, que dirigiu Raia 4, exibido no Festival de Cinema de Gramado de 2019: Davi dirige os episódios 1, Luto, 4, Julgamento, 5, Abençoados, 8, Testamento; Emiliano, os demais: 2, Cura, 3, Batismo, 6, Palavra, 7, Sacrifício. Curiosamente, apesar da inserção de várias cabeças nos itens que compõem um sistema de produção (do argumento gerador, da construção de roteiros, do gerenciamento das encenações tomando a câmara e os elementos para a pele de diretor), o que vemos, nos oito episódios desta temporada inicial do projeto, é uma linha narrativa de grande unidade. A ideia cinematográfica duma arte coletiva, em que o conceito autoral se torna subversivo pelo próprio sentido coletivo, e que está em parte na base da história do cinema gaúcho desde os superoitistas dos anos 70 e 80, parece codificar a estética exitosa, rigorosamente construída de A bênção, um sopro de grande frescor na linguagem cinematográfica brasileira do século XXI.

A narrativa tem um grupo central de personagens que gera intensa criatividade de situações trazida pelos roteiristas e a que correspondem as direções de extrema elegância e equilíbrio, com aspectos visuais de movimentos de câmara e de atores, fluência da montagem e um aparelhamento enxuto dos significados e signos que muitas vezes podem proporcionar ao espectador o êxtase de ver o quadro cinematográfico. Lidando com episódios dramaticamente diversos, as direções de Davi e Emiliano logram adequar a diversidade a uma certa utilização da linguagem visual. Se estamos numa sessão de terapia, o plano é incisivo, investigativo; se é uma cena de amor, uma névoa poética sobrevoa a atmosfera que emana da imagem composta; numa cena de ação, um tiroteio por exemplo, recorre-se a movimentos turbulentos da câmara; é outra a turbulência criada para sonhos ou delírios da mente. Também a forma de propor a atuação dum intérprete se modifica. Priscilla Colombi, que vive a psiquiatra Marta, vai estruturar as sessões de terapia com falas que parecem ironicamente automáticas ou compassivas, buscando um controle artificial sobre o universo emocional complexo das personagens doentes; enquanto João Campos, especialmente na fase em que sua personagem de policial vive seu amor homossexual, vai na direção do desequilíbrio. Werner Schünemann, veterano ator e diretor gaúcho (foi um dos superoititas dos anos 80), se vale dum sarcasmo interpretativo para dar à sua criatura, o inventor do remédio “bênção” para extrair dos homens o medo da morte, o perfeito signo dos absurdos, descobertas e contradições das sociedades estranhamente más do século XXI. E é agradável ver, no elenco de apoio, a jovem atriz Gabriela Poester, na pele de Karen, uma das trabalhadoras do laboratório de Lerner/Schünemann, ela que foi uma surpreendente força em Aos olhos de Ernesto (2020), de Ana Luiza Azevedo.

A bênção é uma produção gaúcha, filmada no Rio Grande do Sul; a equipe é formada toda por gente daqui. Destaque também para a fotografia de Edu Rabin, cujo sombrio bastante particular ajuda a criar este atravessar de abismo que é a própria narrativa de A bênção em sua forma.

Existem ao longo dos episódios vários trechos de grande beleza. Vou referir um deles, talvez o mais transcendente. É no episódio 8, a sequência da morte de Nina (extraordinária composição de Maria Galant). É como se fosse num templo. Santo, o namorado santarrão de Nina, dá a prédica fúnebre. “Morrer é natural, morrer é uma bênção.” Os planos, a montagem e a inserção de atores nesta sequência são de tirar o fôlego. O signo evidencia-se: a narrativa liga a ciência aos cultos no mundo de hoje, a ciência parece ser também uma religião, um dos achados da ideia é pôr no remédio que combate o terror ao desaparecimento o nome “bênção”, termo usado nas religiões, criando na própria atividade científica uma espécie de paranoia mística. Laboratórios e igrejas aproximam-se em suas funções de conquistar fiéis; o uso da palavra bênção identifica essa aproximação. Quando Eleonora (Áurea Baptista), a chaveira que é uma paciente da medicação, quer convencer sua psiquiatra Marta (Priscilla Colombi) a ir ao templo religioso que ela, Eleonora, frequenta, solta a palavra “bênção” no diálogo; Marta ergue os olhos, num breve sobressalto, e no plano seguinte a vemos entrar no templo acompanhando Eleonora. Talvez, neste aspecto, A bênção capte algo do culto da morte que norteia alguns setores decisivos das sociedades deste princípio de terceiro milênio da era cristã.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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