A Ontologia da Loucura: de Erasmo a Leona
Elogio da Loucura retrata o mundo primitivo medieval mas aponta para o sentido critico da Renascenca
Vivendo entre 1466 e 1536 (uma vida de setenta anos), o escritor holandês Erasmo de Roterdã viveu as confluências entre a Idade Média e o Renascimento. Sua obra mais conhecida pela posteridade, Elogio da loucura (Moriae Encomium, em grego; no latim original do autor, Stultitiae Laus; publicada em Paris em 1509, como tudo na época no mundo culto, escrito nos sofisticados meandros do latim, as outras línguas eram bárbaras), transita entre estes dois polos, o medieval e o renascentista. Elogio da loucura retrata o mundo primitivo medieval mas aponta para o sentido crítico da Renascença. Erigindo a Loucura (humanizada) como personagem-ensaio de suas meditações, Erasmo faz o retrato sarcástico e satírico de sua época, tentando achar a luz da lucidez no meio do caos; preso ao século XV, Elogio da loucura permanece inquietando os leitores de vários séculos, porque ali está a natureza humana de sempre.
Na transformação do texto literário numa peça teatral, sob a direção de Eduardo Figueiredo, a atriz (nascida no Rio Grande do Sul mas de carreira nacional, no cinema, no teatro e na televisão) Leona Cavali encarna (e reconstitui) a Loucura imaginada por Erasmo. Ela devora texto, cenário, circunstâncias e plateia. Em boa parte da encenação o que vemos é o rigor intelectual e estético vindo desde Erasmo. Em alguns momentos a adaptação se descontrai para a contemporaneidade do século XXI, fazendo algumas concessões ao humor da plateia. Leona força a participação do público: porém, com sua sensibilidade de domínio do público.
A “stultitiae” do original de Erasmo ultrapassa o conceito individual de “estultícia, idiotice, estupidez” para se deter na questão da natureza geral dos seres humanos. A loucura é social e política. Pode-se dizer que a peça capta com precisão de tempos esta intenção central de Erasmo. Tanto a direção de Figueiredo quanto sua transbordante atriz Leona Cavalli encaminham este sentido erasmiano. Cavalli, cuja aparição no filme Amarelo manga (2002), do pernambucano Claudio Assis, nunca sai facilmente da impressão de imagens do espectador, é muito coautora da dramaturgia ora vista: leitora apaixonada do texto, ela mergulha e nos faz mergulhar naquilo que ainda apaixona num clássico da literatura.
Ir ao teatro por Erasmo de Roterdã e por Leona Cavalli identifica um indivíduo, certamente.
P.S.: A duplicidade ontológica. Loucura é máscara. Primeira evolução de Leona no palco do Teatro São Pedro: de máscara, vociferando. Há a loucura como retrocesso e barreira. Há a loucura como ímpeto de transformação: de rebeldia. Ontologia dupla: em paralelas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br