Em Foucault, as Relacoes Entre a Loucura e a Sanidade
O jogo psiquiatrico eh sutilissimo em O poder psiquiatrico. Foucault o desmonta com a habilidade de um demiurgo
O francês Michel Foucault —sociólogo, pesquisador— foi o grande estudioso da loucura e do mundo das prisões no século XX; queria estar na linha de frente duma ação política pelos manicômios e pelos cárceres, mas foi na teoria transposta em literatura que ele construiu sua posteridade. O poder psiquiátrico (Le pouvoir psychiatrique; 1973) é fruto de alguns cursos ministrados no Collège de France no começo da década de 70 do século passado; tem aqui e ali os ares espontâneos duma conversa com alunos, mas logo adquire a agudez e o refinamento do universo de ideias do grande filósofo da demência.
O poder psiquiátrico mostra como as relações entre médicos (determinados pelas instituições de praxe) e pacientes no caso dos problemas mentais é mais um dos muitos jogos de poder criados por uma sociedade hierárquica, cada vez mais militarizada em seus conceitos. Sempre atento às mutações históricas de fenômenos que parecem repetir-se ao longo dos séculos mas são na verdade alterações de fenômenos antigos, Foucault analisa como, a partir do século XIX, as aparentes linhas mais pacíficas das relações da sociedade estabelecida com o mundo da loucura são substituídas por uma visão mais conflitiva e brutal, aquilo que antes era visto como engano de percepção no estado de demência aparece como uma “insurreição de força”, uma força não dominada e não dominável, o que acresce mais violência a estas relações.
O jogo psiquiátrico é sutilíssimo em O poder psiquiátrico. Foucault o desmonta com a habilidade de um demiurgo. E o remonta com a clarividência científica que não descarta a transcendência de um poeta de sua língua. “De modo que não é manipulando o juízo falso, tentando retificá-lo, expulsá-lo de si pela demonstração, é, ao contrário, travestindo-o, manipulando a realidade, que se vai, de certo modo, fazer a realidade chegar à altura do delírio.” A visão avançada do século XX, trazida por Foucault, é “faz-se a realidade delirar de maneira que o delírio não seja mais delírio; desengana-se o delírio de maneira que ele não se engane mais.” Como fazer isto, como interferir neste jogo de poder entre verdade e engano, real e falso? “Em suma, trata-se de fazer a realidade entrar no delírio sob a máscara de figuras delirantes, de tal modo que o delírio fique repleto de realidade.” Foucault propõe o uso da máscara (símbolo) como tratamento, e aqui em seu livro como entendimento do outro, o dito louco, ou, “sub-repticiamente”, o outro lado da realidade.
No último curso que consta de O poder psiquiátrico o autor aponta para a “despsiquiatrização”, uma das forças da antipsiquiatria, como uma emancipação do “poder-saber que é o conhecimento”, uma tentativa de, tateando, buscar o conhecimento do outro (o demente) dentro do outro e não nos escaninhos do cérebro do conhecedor. Difícil ou impossível?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br