Uma Surpreendente Desinibicao Formal
As Willis, narrado por uma das personagens, a biologa Irina, se detem em algumas mulheres que morreram mas seguem vivas nas paginas
Carlos Gerbase surpreende em seu novo romance. As Willis: sexo, morte e escaravelhos (2024) foge a certas linhas mais ou menos comedidas de sua literatura anterior. É como se, na maturidade, chegasse a hora de soltar a franga, em grau máximo. Desde o “agradecimento” inicial, onde se lê: “Aos poucos humanos simpáticos, meu muito obrigado; aos inumeráveis filhos da puta, vão tomar no olho do cu.” Um grito. Um desabafo. Um protesto. Contra a pequenez. Contra os caminhos (ou indivíduos) que estorvam. Nos agradecimentos finais, onde o autor, Gerbase, tira a palavra de Irina, a personagem narradora, para dar o basta ao relato, vamos saber da gênese deste romance multifacetado e inquieto. Nasceu de um roteiro que o escritor escrevera para um filme. O filme não saiu. “Impedido” de filmar, o cineasta cedeu lugar ao romancista que habita a mesma pessoa; no caminho, muitas pessoas foram contribuindo para a história que nascera solitariamente sob o signo de um roteiro cinematográfico. “Literatura, pelo menos no caso deste livro, não foi uma aventura solitária”, assevera Gerbase. Isto explicaria, em parte, a profunda desinibição estilística que emana de suas páginas; no entanto, de onde vem a aguda unidade obtida pela escrita, a despeito dos universos transbordantes que circulam, senão a mão de um autor consciente, alguém que, depois do tumulto, soube concentrar-se na solidão de escrever?
As Willis, narrado por uma das personagens, a bióloga Irina, se detém em algumas mulheres que morreram mas seguem vivas nas páginas. Mortas-vivas mas com uma estranheza e uma originalidade mais contemporânea, longe dos aspectos de narrativas de vampiras e quejandos mais tradicionais. Irina tem alguns codinomes duplos que remetem a referências de cinema: Carla Wertmüller e Iolanda Cavani. Mas nada disto desvia o relato do essencial: “Também foi Mirta que batizou nosso grupo como Willis, no ano de 1967, cerca de três semanas após nosso primeiro encontro num cemitério de Porto Alegre.” Se alguém pensa numa atualização das relações entre mortos e vivos tal como está em Erico Verissimo em Incidente em Antares (1971), a citação vem: “Agora tô lendo Incidente em Antares. É bem divertido, embora seja uma história de mortos-vivos.” Sobra ainda para outros “literatos”, Salinger, José de Alencar, Charles Dickens. Deve-se levar a sério uma história de mortos-vivos para além duma fantasia barata? Ou é um recurso que, no caso de As Willis, interfere na ousadia única do modelo narrativo?
Há algo de demolidor na proposta como se constrói As Willis. Certas relações e conexões. “Meu ponto de partida costuma ser a ciência, já que sou uma bióloga e estudei os escaravelhos com afinco. Porém, há momentos em que as Willis escapam ao método científico. Sempre podemos recorrer aos raciocínios da física quântica, às incertezas das partículas elementares, mas tenho que admitir para mim, alguns textos de ocultismo do século 18 fazem mais sentido que certos livros de física do século 21.”
Simulando e desfazendo, o leitor-espectador pode perguntar-se diante do romance que foi roteiro, como seriam as imagens que um filme As Willis (ou outro codinome) produziria? Como uma arte que dissimula (na literatura, no cinema ou em qualquer outra, pois há uma essência artística que engloba a todas, talvez), se o filme algum dia ocorrer, poderia participar da mesma proposta de um filme já realizado, Bio (2017), onde o estranhamento é apresentado com o cérebro fincando os pés em sua realidade. No capítulo “Como se eu fosse Martin Scorsese”, a narradora Irina, propondo uma divisão simultaneísta da página à semelhança duma divisão de tela para cenas simultâneas num filme, já indica uma aventura literária que poderia antecipar a aventura cinematográfica. Jogando com os limites da página escrita, Gerbase faz que tudo transborde com um estilo de escrever no auge da desinibição.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br