Marginal Integrado ou Desintegrado

Filme que marcou as consciências cinematográficas dos anos 70, o cineasta norte-americano Stanley Kubrick optou pelo visual repuxado

02/08/2014 23:15 Por Eron Fagundes
Marginal Integrado ou Desintegrado

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Desde a imagem inicial de Laranja mecânica (A clockwork orange; 1971), filme que marcou as consciências cinematográficas dos anos 70, o cineasta norte-americano Stanley Kubrick optou pelo visual repuxado, extravagantemente simbólico, barroco a mais não poder no tratamento plástico: aquele primeiro plano de Alex e seus três comparsas realçam a maquiagem exagerada, com sobrancelhas estudadas que sublinham a maldade do olhar, a tensão de máscaras das faces esdrúxulas; desde o início, Laranja mecânica é um filme que salta aos olhos e chama a atenção sobre si e seus seres como cinema mesmo, como figurativo visual, como quadros cerebrais e individualistas que juntos atingem o nervo do senso plástico do cinema. Mas, a despeito de seu barroquismo que a cada cena recorre a alegorias (sexuais ou de violência, seus temas básicos), Laranja mecânica adota a transparência em suas intenções finais: nada é obscuro ou intrincado na visão futurista que Kubrick tem da sociedade humana, seu olhar impiedoso para estabelecer as conexões entre a violência do indivíduo e a violência estatal é objetivo, não deixa margens para a dúvida, o que Kubrick diz em sua obra beira a obviedade, e esta obviedade só não incomoda o observador porque o realizador usa duma intensa criatividade cinematográfica.

Para sua análise duma humanidade que cada vez mais se desumaniza numa violência institucionalizada que despersonaliza o homem, Kubrick foi buscar a história no escritor inglês Anthony Burgess. Ocorre que o romance Laranja mecânica (1962) é tão uma narrativa social de antecipação quanto uma experiência de modificações (sintáticas, morfológicas, em suma do âmbito da semiótica) da linguagem, é um daqueles romances que o crítico Otto Maria Carpeau chamou “romances poemáticos”, que vêm na esteira de Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, aliás uma influência bastante grande sobre a escrita de Burgess. Se o romance de Burgess se prende bastante à semiótica, não se pode dizer que o filme de Kubrick faça o mesmo, ao menos no mesmo sentido; Kubrick utiliza trechos do linguajar muitas vezes obscuro de Burgess e até carrega na simbologia narrativa, mas em momento algum estas inserções exigem do espectador um contato mais complicado, como é o caso do livro para com o leitor; Kubrick busca agudamente certos elementos intelectuais da arte, mas os transforma comercialmente em cinema. Laranja mecânica é sim um cinema comercial, mas nunca o cinema comercial pasteurizado e repetitivo de sempre; é uma obra que teria os elementos para uma experimentação cinematográfica, mas recusa esta experimentação em nome da comunicação direta ou diretamente  agressiva para os olhos do observador.

Pegando o gancho da semiótica do romance, pode-se partir da observação da professora Anna Hauser (nascida na Hungria mas cuja vivência cinematográfica se tem dado em Porto Alegre desde pelo menos os anos 70) em seu belo artigo “Vivendo na era da Laranja mecânica” segundo a qual em Alex convive um paradoxo desde seu nome, a lex (em inglês, uma lei; no grego, fora da lei). Na primeira parte do filme, Alex é o marginal, o fora-da-lei. Após sua prisão e o tratamento Ludovico que deve reprimir seus instintos de violência (inclusive o sexo), ele passa a ser um marginal integrado: sente o desejo (a loucura marginal), mas a náusea oriunda do tratamento o retém. O sentido de marginal integrado de Alex difere daquele que o escritor português António Lobo Antunes tomou para si (entrevista ao escritor e jornalista gaúcho Juremir Machado da Silva, constante do livro “Visões de uma certa Europa”, 1998); se Lobo Antunes é marginal e integrado (como se pode entender), Alex está desintegrado como marginal para se integrar como o ser social que o Estado requer dele.

Lidando com o simbólico de maneira bastante objetiva, Laranja mecânica chega a seu momento mais evidente da aliança entre o símbolo e o real na cena em que Alex mata a mulher dos gatos atingindo-a com uma escultura de forma fálica da coleção artística da própria mulher; o falo é em Alex um dos símbolos de sua violência, como se sabe no estupro praticado na mulher do escritor e na seqüência em câmara rápida em que ele vai para a cama com duas mulheres; mas na cena da morte da mulher dos gatos ele não se vale do falo de seu próprio corpo, mas do falo esculpido, o falo-signo; mas é tão direto o simbolismo que o falo esculpido parece uma extensão do próprio corpo de Alex, aquela obra de arte fálica é o falo de Alex convertido em signo. Como se vê, nada obscuro ou que dificulte e interpretação.

Centrado numa visão mais simpática à rebeldia jovem (algo bastante mais fácil de adotar na década de 70 do que nos perigosos dias de hoje), as duas seqüências de confronto entre juventude e velhice, num recanto escuro, são emblemáticas. Na primeira parte Alex e sua gangue agridem um velho, exclamando asco contra e velhice; em Mr. Arkadin (1955) há um sentimento parecido quando a personagem de Orson Welles, dando com um velho atirado na rua, resmunga “É a velhice!”. Na segunda parte de Laranja mecânica o velho topa com Alex, já manietado pelo tratamento, e o protagonista de Kubrick é agredido por uma chusma de velhos; as palavras-over de Alex (“É a velhice indo à forra contra a juventude!”) revelam o mesmo desprezo pelos idosos.

Laranja mecânica, que a grande ensaísta norte-americano Pauline Kael definiu como o que poderia ser “obra de um severo professor alemão que se propusesse realizar uma comédia pornô de ficção científica”, é um grande filme, forte, devastador, mas não chega a ter a densidade e as trocas temáticas mais complexas do romance de Burgess; Kubrick, para bem do entendimento cinematográfico, e também para fugir ao que havia de obscuro ou hermético em sua obra-prima anterior, 2001, uma odisséia no espaço (1968), preferiu linearizar os conceitos e exercer sua genialidade no repuxo visual que vem desde a imagem inicial e segue agarrando o espectador até a zombeteira seqüência final.

Cabe, em separado, destacar a exuberante interpretação de Malcolm MacDowell no papel de Alex; é o desempenho da vida de Malcolm, e no ano em que o filme foi exibido em Porto Alegre, 1978, muitos dos cinéfilos gaúchos consideramos esta atuação como a interpretação do ano. Ultimamente o ator tem aparecido pouco em filmes por aqui; o último em que o vi foi na refilmagem de Halloween (2007), feito pelo norte-americano Rob Zombie, filme visto somente em versões de dvd obtidas via Internet.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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