Kubrick no Ponto Alto

Glória Feita de Sangue é um filme que retumba em sua forte objetividade

22/04/2015 12:25 Por Eron Duarte Fagundes
Kubrick no Ponto Alto

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Sem embargo de ter revolucionado a visão dos filmes de ficção em 2001, uma odisséia no espaço (1968) e estetizado com riqueza de símbolos uma reflexão sobre a violência da sociedade contemporânea em Laranja mecânica (1971), é mesmo em Glória feita de sangue (Paths of glory; 1957) que o realizador norte-americano Stanley Kubrick deposita as mais belas, inventivas e cortantes imagens de sua filmografia; é neste filme, seu primeiro e maior lampejo de genialidade, que Kubrick lança as bases de suas críticas antibelicistas, desenvolvidas depois em outros dois grandes trabalhos, Doutor fantástico (1964) e especialmente Nascido para matar (1987), que são todavia como escaramuças da notável estilização de filmar de Glória feita de sangue.

Em Glória feita de sangue, nas sequências de batalha, Kubrick faz a câmara rastejar junto com os soldados que se atiram aos enfrentamentos suicidas e absurdos duma guerra; em Nascido para matar Kubrick refinaria formalmente este procedimento. Em Glória feita de sangue a câmara rude das batalhas é substituída nos interiores palacianos dos generais por uma estética ironicamente cordata, os cenários ricos, os gestos hipocritamente depurados, um mover da câmara mais clássico ou tranquilo. O contraste entre os dois elementos de cena (o generalato e as tropas) é coordenado pela figura do coronel Dax, uma espécie de consciência narrativa que vê a farsa dos julgamentos de guerra e melancolicamente está impotente diante das decisões dos superiores que decidiram executar alguns soldados por covardia bélica, impatriotismo, essas besteiras; na pele de Dax, o ator americano Kirk Douglas tem o desempenho de sua carreira, o que é um superlativo, dado que Kirk é um ator extraordinário e seus desempenhos maravilhosos são muitos.

Extraído dum romance de Humphrey Cobb, Glória feita de sangue se detém num episódio da I Guerra Mundial, quando soldados franceses se recusaram a dar sequência a um ataque suicida contrariando ordem do Alto Comando e acabaram nas mãos dum tribunal de opereta que os condenou ao fuzilamento. Glória feita de sangue é um filme que retumba em sua forte objetividade; o humanismo de Kubrick nunca foi bem aceito no pragmatismo ocidental, na França ou nos Estados Unidos; a forma como ele zomba do patriotismo (“o último refúgio de um patife”, segundo uma citação dentro do filme) e seu idealismo sem concessões ao desbaratar qualquer abertura para o militarismo na sociedade são coisas que talvez pareçam um tanto quanto anacrônicas hoje em dia, mas que no corpo estético de Glória feita de sangue adquirem uma consistência cinematográfica pujante.

A cena final, por sua dose de melodrama (ainda que controlado), foge um pouco não somente ao rigor bélico de Glória feita de sangue, mas também às características habitualmente duras do cinema de Kubrick. Uma jovem cantora alemã vai aparecer num cabaré de tetos baixos a cantar, em sua língua natal, chorando e fazendo os soldados chorarem. O coronel Dax os espia do lado de fora e depois, baixada a poeira sentimental, sai caminhando marcialmente diante das câmaras, nas imagens finais. Quem está na pele da cantora é Susanne Christian, uma alemãzinha que viria a ser a esposa de Kubrick. É um refresco inusitado na violência de filmar da narrativa de Kubrick. Para os amantes do filme, é a conversão em magia do cerebralismo até ali visto. Para os inimigos do filme, é uma tentativa de humanizar um tom quase inumano de reflexão, tentativa que, segundo estes inimigos, seria frustrada, pois a transformação na última sequência estaria forçada. No entanto, Glória feita de sangue, peça icônica do cinema de guerra, sobrevive bem a todas as maledicências e é finalmente um dos poucos filmes da história do cinema diante do qual o espectador pode ajoelhar-se sem ferir os joelhos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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