A Consciencia da Escrita

Nos tempos da lingua apressada e descuidada dos meios de expressao do seculo XXI, Jose Eduardo Degrazia pertence a uma estirpe dos autores que ainda acreditam num certo uso cerebral da linguagem

13/02/2025 05:46 Por Eron Duarte Fagundes
A Consciencia da Escrita

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Nos tempos da língua apressada e descuidada dos meios de expressão do século XXI, José Eduardo Degrazia pertence à estirpe dos autores que ainda acreditam num certo uso cerebral da linguagem, onde as palavras e suas sintaxes parecem ter a precisão dos ponteiros de um relógio, as horas nem para a frente, nem para trás, no ponto certo do sol e da lua. O homem que escrevia no bar (2024) é uma coletânea de minicontos que obedece a três indicativos: rigor, sensibilidade e a estranheza do mundo que habita este rigor sensível do texto. Poeta, Degrazia busca o fundamento lírico das minúsculas histórias contadas em seu livro; mas nada tem do lirismo clássico dentro da literatura brasileira, é um lirismo que tem suas asperezas e é amiúde transversal, seus episódios são alusões enviesadas à realidade do lado de fora das páginas, mesmo quando parece mais evidente ou direta, em sua referência, em Os supremos, aos recentes tempos da sociedade brasileira, criando uma correlação, consciente ou não, com um romance do paraguaio Augusto Roa Bastos.

Num texto (em prosa ou poético) de Degrazia a linguagem precede tudo: na sequência, a memória acopla as palavras a todas as outras coisas. Num breve conto-aforismo, “O verbo”, talvez à maneira de Franz Kafka, o autor elucida: “Inventava palavras antes das coisas, por isso não sabia o que fazer com elas, ou para o que elas serviam. Movia-as no céu da boca de Diógenes. Um deus gago. Um deus grego. Bebia-as num trago. Resolveu criar, então, o mundo. E as criaturas. A emenda saiu-lhe pior que o soneto.”

Há literatura na matemática? Em outro excerto (que é completo em si mesmo), “O universo em expansão”, o ficcionista põe a geometria como personagens  e como centro narrativo. As reticências abrem o trecho, outras reticências o fecham; no entrecho, figuras geométricas desenvolvem-se, interligam-se, tensionam. “... PENSAR UM RETÂNGULO dentro de um quadrado que por sua vez está inserido numa pirâmide que se aloja num triângulo encaixado num losango perfeitamente acomodado num cubo que faz parte de um icosaedro inserido num hexágono — o círculo envolve o todo das figuras formando um universo em miniatura numa esfera onde o dentro e o fora são a mesma coisa outro universo em paralelo que sendo bola um moleque chuta e tudo se expande

infinitamente...”

A geometria é um belo achado para o estilo de escrever de Degrazia. Não como um espaço fechado, o sentido aparente de geometria, mas nestas trocas que uma imaginação geométrica pode estabelecer com as letras.

Os dois últimos contos exercem os cruzamentos narrativos e o simultaneísmo de ações dentro do pequeno espaço de suas fábulas. “Crime na zona do cais” cruza três destinos, “o pingente José Verissimo da Silva Porto”, uma mulher “Dora de tal, conhecida por Lucinde na zona do baixo meretrício onde militava” e “Carlos Cardoso, mais conhecido por Carlão nas rodas dos bares do porto, para quem Dora era coisa Fina”, observando os breves passos de um, de outro, da outra, até o encontro destes passos, para gerar o fundo trágico da cena, como em quadros que se sucedem. “O homem que escrevia no bar”, miniconto que dá título ao volume, inunda a narrativa de personagens que vêm de diversas pautas: “o saxofonista ainda tocava”, “o garçom indiferente”, “o matemático chegou cansado da aula e começou a corrigir as provas dos alunos”, “o tradutor de sumério sentou-se na última mesa vazia”, o “físico, abandonado pela mulher”, “o contista começou a escrever um conto”, “o crítico literário, animal em extinção”, “o cozinheiro chegou no bar no horário de sempre”, “os namorados”, “o minicontista”, os jovens, o delegado, o advogado, “a moça de olhos azuis”, o poeta, o romancista que escreveria “uma boa novela de mistério com todos aqueles personagens estranhos”, o editor que “aproveitou para lançar o livro do poeta”, “o jornalista do caderno literário”, todos os seres coordenados pelo olhar do “homem que escrevia numa mesa de bar” que “foi enterrado numa vala comum”. O exercício desafiador do múltiplo e do simultâneo nos minicontos eleva o rigor, a contenção e o ascetismo da linguagem a uma situação estética inusitada nesta dupla opus final desta obra de José Eduardo Degrazia.

No ensaio que abre o volume, a ensaísta Márcia Ivana de Lima e Silva, citando o escritor argentino Julio Cortázar, estabelece o conceito de miniconto pela extensão e pela busca da miniatura. No caso da literatura brasileira, se poderia passar um pouco por Dalton Trevisan. Mas pode-se ir adiante, ir à essência do miniaturismo em literatura e topar algo disto nos romances de Machado de Assis, que parecem muitas vezes feitos de pequenos fôlegos de contar, em muitos de seus romances há apólogos soltos que somente fazem sentido graças ao engenho imperceptível do ficcionista de Quincas Borba (1891). Há uma espécie de rigor oracional do texto literário brasileiro que, nascendo em Machado de Assis, reaparece em Graciliano Ramos e desembarca em autores como Degrazia, sempre diferenciando-se, acoplando a contemporaneidade à linguagem. Ou mais exatamente: ao cérebro da linguagem.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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