A Arte e o Conhecimento Segundo Rossellini

Rossellini é consciência renascentista que se debruça sobre o espectador em A Era dos Medicis

04/03/2017 23:14 Por Eron Duarte Fagundes
A Arte e o Conhecimento Segundo Rossellini

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É no terceiro e último episódio de O renascimento - a era dos Medicis (L’età di Cosimo de Medici; 1972), filme em partes feito na fase  televisiva do italiano Roberto Rossellini, que se ilumina aquilo que o realizador quer dizer ao longa de toda a produção. Surgem a trajetória e as discussões do humanista Leão Batista Alberti (1040-1472), que escreveu sobre arquitetura como quem faz teoria científica ou filosofia e plantou a base da Renascença italiana (e até europeia) ao imaginar uma reflexão multidisciplinar sobre o mundo, onde não se podia pensar em nada individualmente e a arte o conhecimento exigiam informações oriundas de várias disciplinas e de grande monta. (No século XIX as especializações criaram disciplinas estanques, incomunicáveis, e somente a partir da metade do século XX, com pensadores múltiplos como o francês Edgar Morin, se começa timidamente, e às vezes em vão, a desmontar as paredes entre os compartimentos do saber).

Nos dois primeiros episódios Rossellini vai acompanhar o surgimento, o exílio e o ressurgimento de um dos milionários europeus da época, o banqueiro italiano Cosme de Medici e sua família. O nascimento do capitalismo e suas ligações com a arte renascentista  são retratados com agudeza e notável erudição geral  e cinematográfica por Rossellini neste afresco histórico que mistura, sabiamente, os nobres, o clero, os artistas e o povo num regurgitar social que é de fato inovador, o Renascimento. Rossellini, o humanista enciclopédico, se vê um pouco em Leão Batista; um interlocutor deste filósofo renascentista retruca, no filme, aludindo ao paradoxo das ponderações de Batista, onde a clareza de sua exposição é perturbada pela obscuridade dos assuntos de que trata. Um pouco disto acontece com os filmes de Rossellini feitos para a televisão, e este em especial; a transparência das formas rossellinianas nem sempre é percebida por todos em face do desinteresse que possa ter para a maioria aquilo que está sendo narrado (perceber que, quando fala de coisas tão antigas, está falando da atualidade). A passagem do cinema de Rossellini pela terra sempre foi tumultuada; e isto não mudou muito desde sua morte, há mais de trinta anos, pois o cineasta  avançou para passos que a humanidade ainda pode dar. Escreveu ainda em 1958 o ensaísta brasileiro Paulo Emilio Sales Gomes: “Tudo o que faz de Roberto Rossellini um dos grandes homens de nosso tempo, é ignorado por quase todos e considerado fastidioso por muitos.” Em seu tempo Rossellini atraiu as massas unicamente com sua vida privada: perdeu um filho que tinha nove anos de idade nos anos 40, teve um envolvimento tumultuadamente italiano com a atriz Anna Magnani, deixou Anna para desfrutar dos encantos nórdicos da sueca Ingrid Bergman e viu seu casamento com Ingrid apodrecer definitivamente no fim dos anos 50 quando teria engravidado uma indiana. É mais fácil para o público esta novela bárbara do indivíduo Rossellini do que esmiuçar certas inserções que estão em A era dos Médicis, quando João Batista se refere a utilizar o modelo da natureza como o mais rico para a criação artística (estaria aí uma explicação da invenção do neorrealismo por Rossellini?) ou compreender as sutilezas de certos afrescos de época que  surgem nos fundos de alguns planos em que banqueiros e artistas e religiosos se altercam em suas diferenças e aproximações.

Rossellini vai buscar um ancestral numa personagem histórica de Bernardo Rossellino. Mas na verdade o cineasta está inteiro em Leão Batista, que chegou a conhecer o mecenas florentino Cosme de Medici (1389-1464) e acompanha os passos rumo a Roma do neto de Cosme, Lourenço. Na parte final do terceiro episódio, com o aparecimento das primitivas máquinas, vemos o nascedouro do capitalismo industrial.

Como curiosidade, o ator que vive Cosme de Medici, Marcello di Falco, teria sofrido anos depois uma operação para virar mulher, segundo o depoimento nos extras de Renzo Rossellini (o filho de Roberto, que ainda está vivo, e não o irmão de Roberto, pois este irmão faleceu em 1982). Com um sarcasmo bem italiano, Renzo diz que Marcello di Falco morreu anos  depois como uma senhora gorda.

Outro dado é comparar a suntuosa exposição de roupas eclesiásticas orientais de A era dos Medicis com o desfile de moda também eclesiástico de Roma de Fellini (1972). Ambos os filmes foram rodados quase simultaneamente. O deboche felliniano dá aqui lugar a uma austeridade estética-mística bem rosselliniana. De referência em referência, ainda no primeiro episódio, quando se fala em regiões da fronteira com a França, como Avignon, onde o Papado circulante fugindo de problemas em Roma chegou a instalar-se (em A era dos Medicis tal Papado está em Florença), surge de relance citações à existência duma tal Joana d’Arc, personagem histórica da França que Rossellini retratou Joana d’Arc no fogo  (1954), na fase de seu amor (humano e cinematográfico) a Ingrid Bergman.

A influência do rigor histórico-estético de Rossellini é tão grande que pode ser encontrada paradoxalmente até em filmes anteriores a este A era dos Medicis, como Satyricon de Fellini (1969) ou em trabalhos posteriores naturalmente como Casanova de Fellini (1976). Numa das falas de A era dos Medicis uma criatura refere a “fantasia das coisas”. É como se Rossellini, com seu didatismo criativo, antecipasse ou revelasse certas coisas que seu patrício Fellini estava fazendo por aí ou viria a fazer. Se Fellini, digamos assim, é a  inconsciência do Renascimento, Rossellini é consciência renascentista que se debruça sobre o espectador em A era dos Medicis.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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