A Arte e a Consciencia de uma Escritora
Djaimilia Pereira de Almeida exibe um alto grau da consciencia de seu oficio


Djaimilia Pereira de Almeida é uma escritora portuguesa nascida em Luanda, em Angola. Em O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo— ensaios (2023) ela exibe um alto grau da consciência de seu ofício. O ofício de escrever: ofício que se incrusta em sua alma. “Não vivo de escrever, mas escrever é quem sou” anota Djaimilia numa das frases iniciais de seu opúsculo. E assevera: “Morreria, caso não pudesse escrever, e viveria uma vida de tortura, caso fosse impedida de o fazer, ou se não lograsse encontrar quem me lesse. Caso não pudesse escrever —peso cada palavra— sucumbiria à tristeza e é muito provável que enlouquecesse.” O homem (e a mulher) da escrita como alguém que, sem o ato de escrever, é um louco no espaço? Não é a primeira vez que ouço, ou leio, isto, mas é um sentimento radical que define a consciência do ofício, o que é mesmo escrever no sentido literário do verbo.
Demais, há nestes ensaios de Djaimilia outro dado de tortura que induz a imaginação da escritora a desenhar o que seria dela sem a escrita como um retrato vivo, real mesmo. Ela abre assim suas meditações: “O meu maior privilégio imerecido foi ter nascido em 1982.” E mais adiante se explica: “Houvesse eu nascido setenta, oitenta anos antes, talvez até cinquenta, e o meu destino seria, com sorte, a cozinha, a vassoura, a roça. O meu maior privilégio é este tempo, o meu.” Djaimilia relata: “Fui para Portugal com o meu pai em menina.” A formação —humanista e literária— de Djaimilia é lusa; mas suas origens angolanas e sua negritude (ou crioulidade, para usar duma expressão do ficcionista martinicano Patrick Chamoiseau), como se vê destes ensaios, inevitavelmente assombram tanto sua densidade humana quando sua literatura. Ela já não chora as saudades da mãe e da pátria remota, de onde foi arrancada (“arrancar brutal da flor pela raiz”) pelo pai branco. Exposta, pois, ao colonizador, ela reflexiona, voltando-se para trás: “Mas inclino-me para ela como quem perscruta uma coisa concreta que explica tudo e se mantém, no entanto, misteriosa.”
Inquieta com o modismo atribuído à negritude na literatura, Djaimilia abre neste seu inventário uma consciência literária aguda. De rara exigência para com aquilo que ela ama: as letras. Ela faz várias citações, todas muito precisas. Uma delas, declinando sua admiração pelo conto “Um coração simples”, do francês Gustave Flaubert, é elucidativa: diz Djaimilia que tudo o que precisa saber sobre a arte de estruturar uma história em palavras está ali. Partir de Flaubert é um bom caminho de estabelecer as relações entre o rigor do texto e aquilo que o texto traz atrás de suas palavras, a história, as personagens, o esqueleto duma ficção. Inevitavelmente, Djaimilia apresenta em seu sangue a agudeza da literatura, que é tudo o que interessa.
Dividido em três capítulos potentes como só (“O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo”, o inventário pessoal da autora; “A minha imaginação não se distingue da minha identidade”, entrevista que a autora concedeu à escritora brasileira Stephanie Borges; e “A restituição da interioridade”, uma palestra em inglês de Djaimilia proferida em Nova Iorque), o livro apaixona da primeira à última página pela profundidade e inquietações de suas precisas divagações.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

relacionados
últimas matérias




