O Cineasta do Século XIX

Mais do que qualquer outro de seus filmes, o alemão Max Ophüls revela um espírito do século XIX em O Prazer

28/07/2014 10:06 Por Eron Fagundes
O Cineasta do Século XIX

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Mais do que qualquer outro de seus filmes, O prazer (Le plaisir; 1952), dirigido na França pelo alemão Max Ophüls, revela no cineasta de Lola Montès (1955) um espírito do século XIX, alguém que filmou no século XX como se estivesse praticando alguma arte (pintura ou literatura) do século XIX e no século XIX mesmo. Esta assertiva não é nova: foi o crítico francês François Truffaut quem a trouxe para o universo do pensamento cinematográfico. “Nunca se tem a impressão de estar assistindo a um filme histórico mas a de ser um espectador de 1850, como acontece na leitura de Balzac”, anotou Truffaut nos anos 50 do século XX. Hoje em dia este conceito de Truffaut se torna um pouco difuso e é preciso modelá-lo com alguns pincéis; ocorre que certos filmes do sueco Ingmar Bergman também passam esta sensação de um artista de séculos retrasados; o que acontece com Ophüls é que esta imersão no culto novecentista é radicalizada, aprofundada, e é um pouco como se ele não existisse em seu tempo, sua câmara parece vagar como um fantasma de outras sutilezas. No caso de O prazer isto é ainda mais perceptível porque, extraindo os episódios do filme de três contos do escritor francês Guy de Maupassant, Ophüls dá a palavra ao próprio ficcionista (cuja voz é creditada a Jean Servais, mas a figura do escritor, para além da voz, vai aparecer em algumas cenas mais para o fim, misturando-se com sua própria ficção); é como se Ophüls quisesse metamorfosear-se em Maupassant e se esforçasse por filmar como se o cinema tivesse existido no século XIX e Maupassant pegado da câmara.

Um dos contos que serviu de base para O prazer é A pensão Tellier. Qualquer trecho desta história realista de Maupassant serve para ilustrar as intenções de Ophüls de trasladar esteticamente a sensualidade entediada do burguês novecentista pretendida por Maupassant. “Madame, procedente de uma boa família de camponeses do departamento de Eure, havia assumido inteiramente aquela profissão, da mesma forma como teria sido modista ou comerciante de roupa branca. O preconceito da desonra inerente à prostituição, tão radicado e forte nas cidades, não existe nos campos normandos. O camponês diz: ‘É um bom negócio!’ E manda sua filha tomar conta de um harém de mulheres, do mesmo modo que a mandaria dirigir um pensionato de meninas.” Se o leitor pode passar os olhos pelo conto monocórdio de Maupassant e cochilar no ritmo das palavras, a constância dos movimentos de câmara e a suntuosidade das ambientações decadentes de O prazer pode convidar o espectador a diafragmas rítmicos da narrativa onde também uma certa hipnose sonolenta existe. Ophüls encontrou o seu século (XIX) e choca-se cada vez mais com o espectador dos séculos vindouros. Mas seu gênio é persistente: não adere nunca à vulgaridade.

O baile espiado à espreita pela câmara muitas vezes detrás de venezianas, as figuras do baile perseguidas por uma câmara em travelling, a máscara jovem que disfarça a velhice, o homem que se perde por uma cortesã despedindo-se pateticamente dela correndo atrás do trem, as carroças antiquadas, o cenário duma igreja dominado por prostitutas que esperam pela primeira comunhão da sobrinha duma delas (a câmara desliza da escultura dos anjos para o choro rangente dos fiéis), o pintor que depois duma briga definitiva com a esposa a viu tentar suicidar-se e cuja imagem dele carregando-a numa cadeira de rodas pela praia antevê os dias de sofrimento e de culpa do homem pelo mal causado à mulher. Segundo Truffaut, O prazer é onde Ophüls mais se aproxima de Jean Renoir, o principal de todos os cineastas franceses; apesar de um bucolismo bem Renoir, isto não é verdade; os refinamentos narrativos de Ophüls são de outro naipe; demais, Renoir só poderia ter mesmo existido no século XX.

Entre os discípulos notáveis de Ophüls, eu citaria o francês Eric Rohmer, que, curiosamente, também herdou ensombrecimentos de Renoir. De Ophüls em Rohmer: o mesmo intelectualismo novecentista, um cartesianismo repassado de sensibilidade. De Renoir em Rohmer: o cotidiano conversado, os gestos comuns. E O prazer acrescenta a tudo isto a sensualidade de ver.

 

P.S.: Para lembrar, Guy de Maupassant teve um de seus contos mais conhecidos, “Bola de sebo”, adaptado para o cinema pelo americano John Ford no clássico dos clássicos do faroeste, No tempo das diligências (1939). É claro que a orientação de Ophüls difere bastante da de Ford, que esquece bastante a origem literária do roteiro e parte para ações mais físicas das personagens.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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