A Lucidez no Caos
Claudia de Marchi joga a caldeira em sua literatura em Caotica (2024). A agua ferve


Cláudia de Marchi joga a caldeira em sua literatura em Caótica (2024). A água ferve. Vão saltar gotas quentes que podem causar bolhas aos que dela se aproximam, se tiverem as peles sensíveis demais. O texto é escrito com as vísceras e em momento algum se vale de piedade ou autopiedade. É uma descida no abismo. De Cláudia. E do leitor. Certas observações de Cláudia, que nascem de suas vivências e de sua particular visão de mundo, cortam fundo; e erigem um modo de escrita.
“Precisamos pensar na influência brega do amor romântico em nossa linguagem erótica. ‘Fazer amor’, que expressão nojenta! Eu sempre odiei, já escrevi uma crônica destinada ao tema, mas ela está por aí, não sei onde junto com a minha paciência com gente adulta que usa vocabulário adocicado para definir algo tão maravilhosamente instintivo e animalesco quanto é o bom e velho sexo. Algo cuja delícia é proporcional ao seu status selvagem.” É isto; Nietzsche com Sade. “A gente fode. A gente transa. A gente trepa! A gente não ‘faz amor’, porque amor é sentimento, não é ato que careça de feitura.” Cláudia desbrava em palavras, com o poder de desmistificar, o que se passa do lado de fora de suas páginas. “Há muito tempo eu desenvolvi o hábito de julgar um homem pela sua parceira, especialmente, claro, quando se trata de relacionamentos longevos. Consequentemente, podem me apresentar o maior intelectual se eu considerar a companheira dele intelectualmente deficitária concluirei que se trata dum impostor.” Como certa vez declarou a cantora Rita Lee, a mulher escancara os tabus mas não revela os mistérios.
Áspera. Implacável. Desabusada e livre em sua forma. Vertendo sangue — sangue de viver em cada trecho—, Caótica parte duma coletânea de crônicas que busca nelas uma unidade autobiográfica que dão sentido pleno ao ato de escrever de Cláudia. Uma das inspirações confessas da cronista é a ficcionista francesa Annie Erneaux, no lugar de recriar sua realidade sob a forma ficcional, Cláudia derrama-se em apontamentos cronísticos. O resultado se assemelha ao da escritora francesa num sentido geral: apresentar a voz duma mulher no mundo do patriarcado. Em sua estrutura Cláudia põe em palavras algo pessoal, o próprio caos que, único, gera sua própria arte de escrever. “A vida é uma caos aleatório!”, diz ela. E suas divagações, tensas e originais, diretas e provocativas, percorrem esta busca, aleatória, caótica e pulsante.
Esposa, amante, cortesã, advogada, professora, intelectual, mulher de leituras, mulher de ideias, raciocínios muito determinados por sua posição no mundo, Cláudia talvez tenha chegado ao âmago de Caótica na crônica “Confusão”, que às vezes parece um poema livre e libertário. “Existem antinomias e dissonâncias”. Em outro trecho ela observa: “Quantas vezes eu caí aos prantos por me relacionar com homens que se diziam interessados em mim e não liam sequer uma página dos meus livros e dos meus artigos!” Não será por aí, pelos termos devastadores de Caótica, uma experiência estética feminina inusitada, uma revelação de que os seres humanos não temos uma verdadeira comunicação de alma? Lendo Cláudia, por uma associação qualquer, pensei em alguns dos mais duros e fortes filmes do sueco Ingmar Bergman, que certa vez falou de nosso analfabetismo emocional.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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