As Andancas Existenciais em Rohmer

O Raio Verde (1986), o quinto filme da serie "Comedias e proverbios", uma realizacao do frances Eric Rohmer em que as situacoes cenicas parecem mais soltas

01/07/2025 02:41 Por Eron Duarte Fagundes
As Andancas Existenciais em Rohmer

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Incrustado entre As noites de lua cheia (1984) e O amigo de minha amiga (1987), O raio verde (Le rayon vert; 1986), o quinto filme da série “Comédias e provérbios”, que sucedeu aos bem conceituados “Seis contos morais”, é aquela realização do francês Éric Rohmer em que as situações cênicas parecem mais soltas, como se o cineasta estivesse filmando as conversas e os dramas no momento mesmo em que acontecem, uma espécie de documentário dramatúrgico a que uma estilização confere esta aura única duma obra de Rohmer. O próprio Rohmer informou que aqui, ao contrário de seus outros filmes, não houve um roteiro, talvez algumas questões iniciais a partir das quais pedia a seus atores que improvisassem; os diálogos, que nos contos morais eram rigorosamente pré-escritos, surgiram nos momentos das filmagens; no entanto, é a luminosidade estética de Rohmer que dá a estas falas espontâneas (a atriz Marie Rivière, um dos rostos e vozes caracteristicamente rohmerianos daquela época, aparece nos créditos como coautora dos diálogos) uma inteligência cinematográfica tão uniforme quanto aquela de O joelho de Claire (1970), ambos os filmes são estruturados como um diário em imagens (Rohmer utiliza letreiros que indicam o dia do mês e na semana em que se dão os episódios que vêm a seguir), ambos os filmes misturam a naturalidade interna das ações com o rigor de composição de Rohmer.

O raio verde é um filme visualmente solar, desde a fotografia de Sophie Maintigneux. Mas é conduzido por uma personagem, Delphine, cuja radical característica introspectiva traz para o filme um profundo aspecto melancólico. Delphine, em magnífica criação de Marie Rivière, talvez se retratando um pouco a si mesma, como num documentário metafísico, apresenta dificuldades de aproximação às pessoas, por timidez ou natureza, o que a entristece frequentemente. No começo do filme, a câmara surpreende  duas funcionárias duma repartição conversando. O telefone toca, uma delas atende. Chama alguém fora do quadro: aparece Delphine. Depreendemos que ela está para sair de férias e no telefone seu namorado lhe diz que não poderá ir com ela. Então, ao longo do filme, o espectador acompanha suas andanças existenciais, idas ao interior (praias) e voltas insatisfeitas a Paris, nova viagem ao litoral, o verão exubera mas o coração de Delphine choca-se com a vulgaridade masculina em torno que não atende a seu espírito. Só no fim das férias, à luz duma conversa de turistas mais velhos que ela entreouvira tratando dum romance de Julio Verne e da importância vital e sentimental do raio verde como o último raio visível no ocaso do sol, o ocaso lhe trará um rapaz que parece mais corresponder ao temperamento de Delphine. A última imagem, o acentuado ponto verde do último raio do sol poente, casado com o gritinho em êxtase de Marie Rivière, em que o choro e o prazer simulam algo como um orgasmo espiritual, é um dos mais belos fechamentos de um filme na história do cinema.

P.S.: O romance de Verne não é a única citação literária do filme. Há uma referência a O idiota (1869), do russo F.M. Dostoievski. E o provérbio que encima a narrativa de Rohmer é a transcrição dos dois últimos versos do poema de Chanson de la plus haute tour (1872), de Arthur Rimbaud: “Ah! que le temps vienne / Où les coeurs s’éprennent.” (“Ah! que venha o tempo / onde os corações se apaixonam!”) No último lance de O raio verde esta paixão chega para Delphine, sob a forma de ascese.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@vdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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