As Verdades Aparentes
Como diretor de atores, Eastwood ja tem estrada que o levam ao conhecimento dos caminhos


Clint Eastwood é um ícone histórico do cinema. Como ator e também como diretor. Mas é agora, aos 94 anos, que ele como cineasta chega ao ápice de seu engenho de filmar. Não que ele não tenha feito bons filmes antes. Mas é em Jurado número 2 (Juror #2; 2024) que Eastwood apresenta o que talvez perseguisse há muito tempo, capaz de desvendar certas complexidades da natureza humana camufladas pelo modelo industrial em que seu cinema, ainda e sempre, está inserido. Ele permanece simples e objetivo na forma como elabora seu roteiro, exige de seus atores e articula a montagem fílmica; mas há aqui uma centelha que só se pode tributar a uma, a esta altura, inesperada sabedoria cinematográfica.
Em Jurado número 2 o realizador parte de um drama de tribunal, um gênero bastante formulista do cinema americano: numa briga violenta de casal, em que o homem traz mesmo os aspectos do homem mau e machista, a mulher vem a ser encontrada morta caída num perau da estrada; então, o que se verá nas cenas seguintes é a arregimentação e os trabalhos dos jurados, as testemunhas, a acusação e a defesa, a Juíza, o depoimento do réu. Mas Jurado número 2 nada tem de formulista: é um dos mais inventivos filmes de tribunal. Desde a montagem, fazendo saltitar as sequências entre os diversos fragmentos da ação (os variados dilemas íntimos de cada jurado, os passos jurídicos, a reconstituição paralela de fatos que antecederam o crime), passando pela inteireza dos diálogos e a límpida utilização dos intérpretes, Eastwood não dá descanso ao assombro do observador, desde as relatividades morais que impõe à reflexão até a uma ambiguidade de intenções que poderia dar uma dimensão quase dostoievskiana a este artista do cinema que, para o público majoritário, estará sempre associado a um ícone dos faroestes de Donald Siegel e Sergio Leone, o que já bastaria para configurar uma importância definitiva no cinema. E Jurado número 2 vem trazer uma outra faceta de Eastwood: sem deixar de ser a mesma.
A complexidade da situação dramatúrgica de Jurado número 2 vem justamente da situação nebulosa deste jurado número 2, Justin Kemp, um escritor e jornalista que está com sua esposa grávida. Pouco a pouco a ideia irremediável de que o criminoso ou suspeito, um truculento James Michael Sythe, começa a desvanecer-se, ou criar a dúvida, porque Kemp, na noite chuvosa do crime, teria esbarrado em algo que pensou ser um veado e lhe ocorreu, por tratar-se do mesmo local, ser ele quem, atropelando, matou a jovem Kendall Carter e não o “facínora” Sythe. Eastwood, sábio, nunca desfaz inteiramente esta dúvida: esta questão. Inclusive no plano final da inóspita e perplexa troca de olhares entre uma intrigada promotora (que fizera convicta a acusação) e o assombrado Kemp à porta da casa dele, de seu lar com a jovem esposa e o bebê recém-nascido. Sem nenhuma sofisticação literária ou metafísica, Eatswood, com absoluto senso cinematográfico à maneira americana, põe diante do observador um dilema próximo daquele do romance russo Crime e castigo (1866): pode-se manter livre um bom cidadão que cometeu um crime e deixar na prisão, a pagar por esse crime, um elemento que faz mal à sociedade? A ideia de Eastwood, o artista, não o homem, não é resolver a questão: é lançar a consciência numa espécie de teia de insolubilidade. Não sabemos: nunca saberemos.
Como diretor de atores, Eastwood já tem estrada que o levam ao conhecimento dos caminhos. Daí o intérprete central Nicholas Hoult como Kemp tem uma surpreendente densidade, mesmo com a frieza de suas expressões. A excelência da atriz Toni Collette requinta o cinema de Eastwood, assim como o veteraníssimo J. K. Simmons. Familiarmente, o diretor emprega sua filha Francesca Eastwood, atriz e modelo. Com a precisão de um cronômetro, as imagens de Eastwood são extraordinariamente marcadas.
O mais enviesado de tudo é que, em seu mais belo momento, Eastwood é esnobado pelas salas. Jurado número 2 foi direto para um serviço de streaming. Dizem que a própria distribuidora, a Warner, sabotou o cineasta nas salas, e que o motivo é político, o conservadorismo de Eastwood como cidadão, sua associação com o trumpismo. Mas, para o amante de cinema, ao deparar um filme como Jurado número 2, sabe que aqui a arte de Eastwood é outra, para lá de avançada e com nuvens fora do alcance de certas pequenas de visões de mundo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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