Alessandra Rech, Um Cume Literário na Serra Gaúcha
Nesta entrevista, dada por email, Alessandra Paula Rech fala de sua história no jornalismo, de suas primeiras relações com a literatura
A escritora e o articulista na Feira do Livro de Caxias do Sul
Nascida em Caxias do Sul em 6 de fevereiro de 1975, jornalista, professora universitária, escritora, Alessandra Paula Rech tem um dos textos mais agudamente literários que se podem ler no Brasil de hoje. Cronista do jornal caxiense “Pioneiro” entre 2000 e 2014, publicou cinco livros até o momento. “Aguadeiro” (2007), de contos, “Na entrada-das águas; amor e liberdade em Guimarães Rosa” (2010), ensaio, “O sumiço do canário; quando os finais precisam ser inventados” (2012), infanto-juvenil, “Mirabilia” (2014), reunião de crônicas com um sentido do maravilhoso, e acaba de lançar “A insônia dos sabiás” (2018), um retorno ao universo infanto-juvenil. Alessandra também escreveu o roteiro para o filme curto “A sagração do cotidiano” (2009), de Janete Kriger, sobre o fenômeno popular-místico da benzedura na serra gaúcha. Nesta entrevista, dada por email, Alessandra fala de sua história no jornalismo, de suas primeiras relações com a literatura, do atual momento brasileiro, de seu novo livro, de sua experiência como roteirista de cinema, de suas admirações na literatura e no jornalismo.
Repórter: Tu és formada em jornalismo. Conta algo de tua atividade jornalística: onde trabalhaste, que fazias para jornal, se trabalhaste em televisão ou rádio.
Alessandra Rech: Trabalhei por 12 anos na redação do Pioneiro (grupo RBS) em Caxias do Sul. Foi uma experiência deflagrada ainda durante o tempo de estudante de Jornalismo na UCS (Universidade de Caxias do Sul), e que me fez muito feliz, por estar em um ambiente criativo, de troca com os colegas, de informalidade - e ao mesmo tempo muito foco no que fazíamos. Foi no jornal que tive a oportunidade de desenvolver-me como cronista, e segui escrevendo nos anos seguintes à minha saída, quando fui fazer o doutorado e me dedicar à atividade docente na UCS.
Repórter: Sendo escritora, como vês tua aproximação à literatura desde a infância: primeiras leituras, que é que mais te atraía, em menina, nos livros, algum(a) professor(a) que tenha te estimulado mais a ler e depois a escrever?
Alessandra: Tem algo na literatura que depende muito de um ímpeto individual pra ler, um caráter mais introspectivo. Não tínhamos muitos livros, no sentido da literatura. Meus pais adquiriram a enciclopédia Conhecer, muito completa, e na época era minha grande busca. Ler sobre dinossauros, pirâmides, constelações, vulcões... Quando ia visitar um parente, mesmo que por poucas horas, carregava comigo um ou dois volumes... e eram pesados. Mas eu tinha ali a garantia de que teria ocupação por lá.
Quanto ao papel da educação no incentivo à leitura, creio que é muito importante, mas que há séria defasagem. Tínhamos a tal ficha de leitura, e foi assim que conheci a Coleção Vaga-Lume, com clássicos como “A montanha encantada”, de Maria José Dupré. Isso nos primeiros anos do ensino fundamental. Estudei em colégio de freiras, tive uma boa base em língua portuguesa, mas as disciplinas de humanas eram capengas. História foi um desastre! (e o resultado está na profunda desinformação que se sobressai nesse ano eleitoral). Uma vez, no oitavo ano, acredito, fui "flagrada" lendo Machado de Assis durante a aula de Física. E foi um escândalo! A professora ficou indignada. Naquelas alturas, se fosse possível focar minha formação nos meus interesses, teria perdido menos tempo. Na adolescência, um tio meu, irmão caçula do meu pai, Rubens, foi quem me emprestou os primeiros livros. Um deles era o Diário de Anne Frank. Eu devia ter 12, 13 anos, a idade da protagonista. Fiquei fascinada.
Não parei, virei rata de biblioteca. Mas não tinha critérios. Consumi muito best-seller, estilo “As brumas de Avalon”. Outro choque decisivo viria no tempo da faculdade, quando a Daniela Teixeira, colega de Jornalismo, faria uma leitura em voz alta de Clarice Lispector. Era a crônica "Perdoando Deus". Aquela literatura voltada para o mundo que cabe no íntimo da escritora, a gigantesca metáfora possível em um fragmento do cotidiano iria influenciar para sempre meu modo de escrever.
Repórter: Como coabitam em ti a jornalista e a escritora?
Alessandra: Meu olhar de jornalista talvez tenha em comum com a escritora da atitude do cronista, de buscar no cotidiano algo que o ilumine. Gostava muito de fazer reportagens com tipos humanos diversos quando viajávamos. Descobrir histórias e contá-las. O jornalismo tem algumas características muito técnicas que, a meu ver, confrontam com o pensamento crítico, com a profundidade... Então precisei me distanciar das redações mais tarde. Mas carrego ainda algumas boas heranças, uma delas talvez seja a de não suportar repetição. Assim como um jornal dura apenas 24h, e no dia seguinte é tudo de novo, não sei dar a mesma aula duas vezes, não sei ficar muito tempo escrevendo sobre um determinado tema. Procuro acolher essa diversidade de interesses com a preocupação de não ser superficial.
Repórter: Lendo “A insônia dos sabiás”, tem-se a impressão de que o despojamento extremo de sua linguagem é algo bastante trabalhado. Muito mais algo elaborado do que instintivo. Às vezes sentimos a necessidade de reler as frases para melhor captar o que há de complexo no simples. Na prática, como se dá mesmo tua escrita, ou como tu vês isto: instintivo ou elaborado?
Alessandra: “A insônia dos sabiás” foi um texto que fluiu, eu diria, de forma mais instintiva. Para mim havia um desafio: foi o primeiro texto de ficção que construí! Verdade... nas crônicas, e mesmo na outra experiência infantil (“O Sumiço do Canário”), eu parto sempre do vivido, do observado... Por mais que “A insônia...” tenha seu pé na realidade, ao abordar um problema ambiental, há mais personagens e situações ficcionais.
Repórter: “A insônia dos sabiás” tem compromissos literários mas é ao mesmo tempo uma narrativa infanto-juvenil de intenções ecológicas. Como te surgiu esta ideia de usar o fenômeno dos sabiás insones na literatura? Algo interessante para a narrativa, algo social, as duas coisas em separado ou simultaneamente?
Alessandra: Penso que o compromisso com a realidade, que parece vir antes nessa obra, precisava andar junto com o literário. Nisso tem o desafio também de me comunicar com os jovens. Pensei na ilustração como forma de dar irreverência ao sabiá (especialmente na capa, que correspondeu a minha ideia, sem que eu precisasse pautar a ilustradora! , a Vivi Pasqual. Foi uma sintonia bacana). Corri o risco de ser normativa, temi ser didática... mas tenho recebido retornos muito carinhosos de leitores jovens - e de adultos também, o que me surpreendeu.
Repórter: “A insônia dos sabiás” é um livro para crianças. Como encaras fazer este gênero de literatura num tempo em que o cinema e a televisão e hoje até as redes sociais abastardaram muito as mentes infantis?
Alessandra: Creio que os jovens estão lendo menos, sim, mas ao mesmo tempo, o livro infantil circula muito mais que a escrita para adultos. Isso porque contamos com o apoio da escola para ajudar o jovem nesse percurso por letras que não são hiperlinks à primeira vista. Demora para que descubram que uma frase contém muitas janelas possíveis de sobrepor, que um livro acessa conteúdos vários dentro da gente, e não consome bateria!
Repórter: Fora de Caxias do Sul, que é teu reduto, tens observado a recepção a teus textos?
Alessandra: Fora daqui, tem havido uma boa circulação de “O Sumiço do Canário” via Editora Belas Letras. Os demais ainda não têm uma distribuidora formal, pois há um conflito entre ser lido e ter algum retorno com o livro, e precisei optar por vender diretamente os meus exemplares, para não cair nos 10% tradicionalmente oferecidos ao escritor, mesmo quando todo o custo da edição já foi pago, no meu caso, graças ao Financiarte, lei de incentivo à cultura que vigorou desde 2002 em Caxias do Sul, a partir do prefeito Pepe Vargas (PT). Este ano o edital está sendo revisto e não saiu, eliminando uma oportunidade essencial para artistas, não apenas escritores.
Repórter: Tu tiveste uma experiência em cinema. Assinaste o roteiro de “A sagração do cotidiano, benzeduras” (2009), de Janete Kriger. Como foi isto?
Alessandra: “A sagração do cotidiano” partiu de uma reportagem feita para o Almanaque, caderno de fim de semana do Pioneiro, uns anos antes. A Janete me convidou pra esse desafio do roteiro e foi gratificante poder pensar (daí já com os subsídios adquiridos no Mestrado em Letras e Cultura da UCS) nos elementos utilizados nas bendezuras e seu valor simbólico, que dialoga com várias culturas, na linha do Mircea Eliade, que elabora com muita poesia a história das religiões.
Repórter: Como vês o avanço dos movimentos de extrema-direita no Brasil e no mundo? Há quem diga que na Europa as pessoas recorrem à direita em função dos movimentos imigratórios (que faz recrudescer a xenofobia) e também por causa da crise que chegou em 2008. E que na América do Sul os motivos seriam outros: a violência extremada e a corrupção descontrolada. Que achas?
Alessandra: Eu resumiria da seguinte forma: se você tem um problema com a figura paterna, faça análise, não tente colocar um pai autoritário na presidência da República! Mas sabemos o quanto análise é um privilégio para poucos. Então temos um país de grandes desigualdades, onde, naturalmente, emerge a violência. Há uma cultura do medo disseminada pelos veículos de comunicação, pela superexposição à informação. Então temos medo dos outros, medo das doenças, medo de perder o emprego... Freud traduzia o desamparo como a questão política central. Mas é preciso transformar esse desamparo em ações de participação e de maior ligação comunitária. Reintegrar o outro, ou não terá limites a altura das muralhas, a espessura das blindagens... Vejo com muita tristeza que a saída fácil parece ser deixar o Brasil. Temos um país muito rico, que interessa demais ao capital estrangeiro. Somos pouco participativos politicamente, e vamos deixando essa apropriação seguir um curso cada vez mais violento.
Repórter: Se fosses instada a citar um único escritor, qual seria? Um único jornalista? Por quais motivos?
Alessandra: Citaria Hilda Hilst, como escritora, cuja obra ampla, intensa, de certo modo autobiográfica, é também um resumo das dificuldades da vida de um escritor. Hilda, mesmo tendo posses, e tendo a possibilidade de se dedicar inteiramente a sua escrita, não teve em vida o reconhecimento merecido. Esses dias, questionei um famoso poeta rio-grandense sobre a poesia dela, e ouvi algo como: "boa poesia, para mulheres". Sim, há barreiras de gênero, ainda que o texto, a arte, assim como o amor, não estejam engavetados em gênero, se discrimina as grandes mulheres escritoras deste país. Ao lado da Hilda (e Clarice, já citada), coloco a Carolina de Jesus, escritora da favela, cuja obra “Quarto de despejo” precisa ser lida. Mas era para citar apenas um nome! (risos). No jornalismo, tenho admirado muito a Eliane Brum, não tanto a da primeira fase das reportagens para a grande mídia, mas essa em que ela se transformou, produzindo textão altamente reflexivo, direcionado politicamente (é preciso quebrar o tabu do jornalismo imparcial). É preciso se saber sujeito afetado e, a partir dessa afetação, construir pontes de diálogo. A Eliane faz isso muito bem.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br