Jornalismo em Marcha

A gaucha Eliane Brum eh, entre os jornalistas brasileiros, uma das cabecas mais antenadas com os momentos brasileiros nos tumultos do seculo XXI

13/01/2021 14:19 Por Eron Duarte Fagundes
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A gaúcha Eliane Brum é, entre os jornalistas brasileiros, uma das cabeças mais antenadas com os momentos brasileiros nos tumultos do século XXI. Consciente das facilidades que podem superficializar o jornalismo da hora, Eliane aprofunda suas pesquisas de repórter com duas vertentes de sua personalidade: o exame crítico do que não aparece nas aparências e sua vivência e aprendizado na literatura e nos pensadores que a antecederam ou são mesmo seus contemporâneos.

Brasil, construtor de ruínas — um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (2019) junta estes atributos de repórter e ensaísta que produzem os momentos elevados da arte jornalística e literária de Eliane. O livro traz uma série de reflexões que ela desenvolveu, em textos desde 2009, quando, ela o afirma no prefácio, “me tornei, além de repórter, jornalista de opinião”. Mas não se trata aqui neste livro da habitual coletânea de crônicas ou textos; ela foi aos textos originais, retomou-os, remontou-os, reescreveu-os em muitos trechos para dar uma unidade de pensamento —o seu pensamento— em torno do Brasil que todos vemos e vivemos hoje. Assim, o leitor atual tem um diálogo cheio de êxtases com o texto de Eliane, que joga com este dado dialético entre reproduzir a realidade e a recriar, buscando ultrapassar a crise da palavra, pela destruição dos significados, que ela identifica no processo social brasileiro da atualidade.

Inquietando-se com a situação das periferias no Brasil e com os povos da floresta e a destruição das matas, propondo um acordar urgente em torno da emergência climática, Eliane faz o desenho radical, à sua maneira, da sociedade brasileira do século XXI. Esmiuçando os pontos de contato entre aquilo que o PT entregou e aquilo que Bolsonaro está fazendo, Eliane aduz que talvez o bolsonarismo não existisse sem o lulismo; nenhuma personagem de nossa República recente sai ilesa da afiada faca (literária e jornalística, é bom sempre lembrar) de Eliane. Mas, para além destas divagações da atualidade brasileira, a autora penetra numa espécie de raiz central: a crise da linguagem como transformação duma realidade, a realidade das ruas e a realidade das reflexões.

Esta crise é apontada crucialmente em alguns trechos do texto de Eliane. Num destes trechos, ela analisa o embate entre dois deputados, Jean Wyllys e Jair Bolsonaro, na votação do impechment da presidenta Dilma Roussef. “Bolsonaro o insultou, chamando-o de ‘viado’, ‘queima-rosca” e ‘boiola’. Agarrou-o pelo braço. Jean Wyllys cuspiu em Bolsonaro.” Eliane faz uma interpretação inusitada do gesto de aparência grosseira de Wyllys diante da grosseria. “Para além de debater se o cuspe é aceitável ou não, há que decifrar o gesto de cuspir. E Eliane, num parágrafo extraordinário, lança sua luz sobre o fato Wyllys-Bolsonaro como simbólico do Brasil de nossos dias.

“Quando alguém democraticamente eleito pode homenagear um assassino em série da ditadura e lembrar sadicamente que ele era o ‘pavor’ da presidenta que está sendo tirada do poder e, em seguida, cometer homofobia, e nada se mover além de mais palavras, é porque as palavras se esvaziaram de poder. O cuspe não acertou apenas Bolsonaro, acertou muito mais. Tendo apenas palavras mortas a seu dispor, palavras que não dizem, talvez só tenha restado cuspir. Sem palavras após o 17 de abril de 2016, manifestantes cuspiram e vomitaram sobre as fotos de parlamentares Brasil afora.”

Outro instante em que a ensaísta investiga a questão da linguagem no corpo da realidade é ao debruçar-se sobre o pomposo discurso de posse do chanceler Ernesto Alves, o erudito vazio dentro do governo de trogloditas incultos.. Detendo-se sobre a contraposição que Araújo faz entre um jornal crítico norte-americano e duas velharias brasileiras, o romancista José de Alencar e o poeta Gonçalves Dias, a autora tenta escavar nestas referências absurdas, bobas, quase infantis, como tudo o mais no desarrazoado e erudito verbo do ministro, coisa ditas para impressionar tolos e na contracorrente da linguagem mais rasteira do bolsonarismo. Nesta investigação Eliane analisa o romance indianista O guarani (1857), de Alencar, e aí sugere que a falsificação da realidade indígena por Alencar está próxima da falsificação pretendida pela era bolsonarista: fazer com que as palavras deixem de retratar o real. Eliane ainda nos diz, num tópico mais adiante: “No Brasil dominado pelo bolsonarismo, o truque de tratar laranjas como cadeiras para interditar o debate é amplamente utilizado”.

Brasil, construtor de ruínas é uma obra de arte inserida em seu tempo e em sua realidade. “A arte não é adereço. Ela tira as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela junta os diferentes.”, anota Eliane lá pelo final de seu livro. Eu uso as palavras de Eliane para seu próprio livro: tira as pessoas do lugar, sim, para as jogar no centro de nosso processo cultural, as lutas de hoje que todos vivemos. E o final do livro coroa todas as reflexões com um convite à resistência: por variados caminhos, do riso à poesia.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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