A Era do Trabalho por Durkheim
O livro Da Divisão do Trabalho Social, de Émile Durkheim, é um pensamento apropriado do fim do século
O ócio original do humano foi transformado na necessidade do trabalho especialmente a partir das sociedades industriais. É no centro deste furacão que o sociólogo francês Émile Durkheim concentra sua reflexão sobre o trabalho como fonte de prazer, para além da necessidade industrial, em Da divisão do trabalho social (De la división du travail social; 1893). Um pensamento apropriado do fim do século: fim do século XIX, um salto do cientificismo do século anterior para as múltiplas caras, onde a ciência topa com as magias como elementos da própria ciência, do século posterior, o século XX, o século por vir (ou do porvir). Como encarar hoje, no pórtico do século XXI, quando os avanços tecnológicos inventaram novos conceitos de trabalho e prazer, as ideias refinadas, outrora avançadas e no entanto sempre atuais de Durkheim?
É o que se propõe neste comentário, feito à luz da leitura do livro essencial do pensador francês, numa edição da Martins Fontes, uma editora paulista, em tradução de Eduardo Brandão.
Lido assim na calma das horas, Durkheim é um precursor. Tem um pouco do humanismo global de Edgar Morin. Uma certa vibração do texto objetivo e científico de Durkheim foi despejada nas meditações enciclopédicas de Morin: são primos de pensamento. O trabalho em si é visto pela maioria das pessoas como um sacrifício, um mal necessário da vida. O que Durkheim aduz é que a divisão do trabalho é que introduz o prazer de trabalhar, pela introdução do elemento da solidariedade, os homens-juntos em ação. Não há aí o germe do tribalismo lúdico de outro francês de hoje, Michel Maffesoli? Eis: “Segundo a teoria mais difundida, ela [a divisão do trabalho] não teria outra origem além do desejo que tem o homem de aumentar sem cessar sua felicidade. Sabe-se, de fato, que quanto mais o trabalho se divide, mais seu rendimento é elevado. Os recursos que põe à nossa disposição são mais abundantes; também são de melhor qualidade. A ciência se faz melhor e mais depressa; as obras de arte são mais numerosas e mais refinadas; a indústria produz mais e seus produtos são mais perfeitos. Ora, o homem necessita de todas essas coisas; parece, pois, que deva ser tanto mais feliz quando mais coisas possua e, por conseguinte, que seja naturalmente incitado a buscá-las.”
O primeiro dado está lançado. O trabalho pode dar prazer pelos contatos entre os seres humanos, dividindo um trabalho volumoso. É verdade, porém, que, diz Durkheim, “o prazer não é a felicidade”, no entanto, aduz ele, “é um elemento dela”. Na conclusão de suas ponderações sobre a era do trabalho no miolo da revolução industrial, Durkheim expõe uma ética trabalhista que passava ao largo dos filósofos do século XVIII, como Jean-Jacques Rousseau, ainda dominados pelo mundo primitivo do ócio, do homem das cabanas que caçava e pescava e namorava. Pergunta-se, por derradeiro, Durkheim: “Mas será que a divisão do trabalho, ao fazer de cada um de nós um ser incompleto, não acarreta uma diminuição da personalidade individual? É uma crítica que se lhe fez com frequência.” Todavia, o trabalho dividido é sem dúvida uma questão moral: a partir do cotidiano, sem as apoteoses místicas do cristianismo, dividir o trabalho entre os indivíduos ajuda a disseminar os meios para a fraternidade no seio dos homens. Não é isto uma constatação do grito de Morin de que devemos ser solidários não porque queremos salvar-nos mas porque estamos sós no universo? Ou, pensando com Jacques Monod, depois do acaso original, é a necessidade que nos impele e faz construir nossos próprios acasos? Concluindo com Durkheim: “Mas a reflexão pode e deve servir para assinalar o objetivo que se deve alcançar.” É o que aqui, e em Durkheim, se buscou fazer.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br