A Permanente Polemica
O franco-atirador permaneceu como o trabalho mais citado - por admiradores e por detratores - da filmografia de Michael Cimino
Certos filmes nascem sob a aura duma polêmica que se eterniza. O franco-atirador (The deer Hunter; 1978), dirigido pelo norte-americano Michael Cimino, apareceu nas telas de todo o mundo no momento em que Hollywood fazia o mea culpa da sociedade americana em torno do conflito do Sudeste Asiático, a guerra do Vietnã. Lado a lado com o filme de Cimino, o melodrama denso e mórbido Amargo regresso (1978), de Hal Ashby, e a delirante viagem visual Apocalypse now (1979), de Francis Ford Coppola, eram as produções mais badaladas sobre o tema, que ganharia um reforço aventuresco nos filmes da série Rambo. O franco-atirador permaneceu como o trabalho mais citado —por admiradores e por detratores— da filmografia de Cimino. Depois o realizador se perdeu bastante dentro da indústria do cinema em que estava inserido e caiu em desgraça; isto se explica porque o cineasta, conquanto não fuja às convenções de filmar do cinema americano, se vale de muitas elipses que tornam suas narrativas uma espécie de quebra-cabeças para um público que costuma querer tudo mastigado, de sentido evidente.
Estas coisas entre o pessoal e o industrial estão visíveis nas três horas de projeção de O franco-atirador. Concebido com extraordinária beleza formal e dirigido com absoluto senso de cinema por Cimino, O franco-atirador divide-se praticamente em três partes. A primeira parte (a maior, de cerca de uma hora e pouco talvez) é o que acontece a um grupo de amigos antes de partirem para o Vietnã, o casamento de um deles é narrado com sobras formais luxuriosas mas acríticas, as possibilidades de dissecar o comportamento americano a partir das festas nupciais são desprezadas por Cimino e estamos longe do olhar feroz de Robert Altman em Cerimônia de casamento (1978). A segunda parte vai ao Vietnã e seus horrores: a última cena da primeira parte, os amigos se reúnem para ouvir um deles dedilhar Chopin ao piano, é cortada em sua introspecção para a cena que vai abrir a segunda parte, um dos amigos ateia fogo num vietcong que pretendia jogar uma granada contra civis, estamos em pleno conflito vietnamita. Na terceira parte temos o desconsolo moral dos ex-combatentes que voltam, neuróticos, à pátria.
Cimino costura tudo de maneira estilisticamente brilhante, ainda que não clareie com a objetividade que o público habitual quer o que se dá mesmo entre as personagens. Com sutileza, Cimino expõe em sua narrativa aquilo que desde sempre é a raiz de sua polêmica: o fascismo do homem comum americano (sua patriotada, sua ojeriza pelo estrangeiro, sua facilidade em transformar-se em vítima onde ele em boa parte é algoz) é observado com benevolência pelo realizador, aquelas reuniões masculinas em bares e aquela forma que tem os seres masculinos de tratar as mulheres, tudo aparece sob uma forma tão acrítica que, desde o primeiro contato com o filme em 1979, a impressão de que a voz narrativa endosse estes comportamentos retrógrados é extremamente presente. Ontem como hoje, há quem pense assim e há quem discorde: a polêmica se eterniza. Fascista ou obra de arte humana? As duas coisas, provavelmente. Se O último tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, traz o voyeurismo machista para a frente das discussões, O franco-atirador mantém eternamente as questões das relações miúdas como signos incorpóreos do fascismo cotidiano. As sequências das caças aos veados nas montanhas nevadas, talvez inspiradas nas caçadas de A regra do jogo (1939), do francês Jean Renoir, e Meu tio da América (1980), do francês Alain Resnais, são sintomas deste olhar americaníssimo de Cimino. Outra citação é o final: a canção patriota das personagens emula o que víamos no fim de Glória feita de sangue (1958), do americano Stanley Kubrick, com a diferença de ferocidade de Kubrick para a complacência obediente de Cimino.
Demais, ao lado de seus méritos de direção, vale a pena topar em O franco-atirador com a sensibilidade interpretativa dos velhos tempos de Meryl Streep, Robert de Niro, John Savage, Christopher Walken.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br