A Ficção no Sangue de Jane
Mansfield Park (1814) é um dos belos textos de Jane Austen
A romancista inglesa Jane Austen está longe das sofisticações de uma ficção que se autorreflete como aquela do norte-americano Henry James, que viveu e escreveu nos cruzamentos dos séculos XIX e XX; Jane viveu e escreveu mais no começo do século XIX, marcada, é claro, pelo romantismo provinciano então vigente nas estéticas praticadas. Mas a base moral e intelectual de Jane foi depois aprimorada por James e também por outro escritor de língua inglesa, o britânico Edward Morgan Forster. Sem Jane, o mundo literário de Henry e também o de Edward seriam outros.
De que trata Austen em sua novelística? De sentimentos familiares, moças que herdam e querem casar, um mundo arcaico que hoje já não faz sentido e surpreende ainda possa interessar ao leitor. Mansfield Park (1814) é um de seus belos textos. Ali ela manipula linguagem e personagens com uma precisão exemplar; a filha adotiva Fanny é o olhar central deste universo provinciano e pré-burguês do princípio do século retrasado. Sem ainda os instrumentos de refinamento permitidos ao francês Marcel Proust, Jane o antecipa na utilização do tempo como elemento narrativo do romance. Ela começa sua história por uma frase temporal que introduz o observador numa espécie de nuvem da mente do observador: “About thirty years old Miss Maria Ward, of Huntingdon, with only seven thousand pounds, had the good luck to captivate Sir Thomas Bertram, of Mansfield Park, in the county of Northampton, and to be thereby raised to the rank of a baronet’s lady, with all the comforts and consequences of an handsome house and large income.” Proust começava seu romance-rio, redigido pouco mais de cem anos depois, por uma frase mais enxuta (enganando um pouco, pois as frases seguintes seriam quase todas longas, conectivadas) mas de efeito semelhante no tempo da mente, no tempo da memória de todos: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure.”
O jogo com o tempo narrativo em Mansfield Park é o tempo todo um jogo com a intensidade emocional da narrativa. Observe-se o parágrafo que abre o capítulo 32: “Fanny had by no means forgotten Mr. Crawford when she awoke the next morning; she remembered the purport of her note, and was not less sanguine as to its effect than she had been the night before. If Mr. Crawford would but go away! That was what she most carnestly desired: go and take his sister with him, as he was to do, and as he returned to Mansfield on purpose to do. And why it was not done already she could not devise, for Miss Crawford certainly wanted no delay. Fanny had hoped, in the course of his yesterday’s visit, to hear the day named; but he had only spoken of their journey as what would take place ere long.” A expressão “a manhã seguinte” (the next morning) associada ao verbo “acordou” (awoke) e ambos precedidos do tempo mais-que-perfeito (em inglês, o “past perfect”) “esquecera” (had by no means forgotten Mr. Crawford, não esquecera Mr. Crawford) criam um liame temporal que, ainda sem as afetadas invenções proustianas ou pós-proustianas, se alçam em sutilezas inesperadas e que permanecem vivas, mesmo que Proust e outros as tenham desbancado. E a oração final completa exemplarmente o quadro do tempo: “mas ele falara da viagem como algo que aconteceria depois” (veja-se o uso preciso, marcando o tempo, de termos como “journey”, viagem, o tempo condicional, “would take place”, aconteceria, o advérbio “long”, tempo depois, antecedido por aquela estranha, antiquada e intraduzível preposição “ere”, este “long” tendo a função que o advérbio proustiano “longtemps” tem ao abrir a grande narrativa de Proust).
Uma obra-prima de minúcias, com certeza, o romance de Austen. Tem adaptações pouco conhecidas para cinema e televisão. E que mereceria o olhar de um diretor talentoso: há em seu interior tesouros pré-cinematográficos escondidos.
A edição da Landmark é bilíngue. Ainda bem, para quem lê em inglês. A tradução para o português de Adriana Salles Zardini peca por vários desacertos sintáticos em nosso idioma pátrio e excessivos problemas de revisão. Daí que sempre cai bem pelo menos reler os trechos mais confusos em português no inglês original.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br