As Situações de Novela
A inglesa Jane Austen foi uma das exceções que furou o bloqueio do mercado de escrever para as mulheres
Contar histórias, isto é, fofocar sobre a vida é muito mais do espírito feminino. Coisas de mulheres. Mas quem escrevia histórias para serem lidas pelas mulheres no século XIX eram homens: a literatura de ficção talvez fosse um bom negócio, e os homens são seres de negócios. Poucas mulheres escreviam: não pareciam ser aceitas no mercado. A inglesa Jane Austen foi uma das exceções que furou o bloqueio do mercado de escrever para as mulheres. E não foi fácil: seus esboços literários foram o mais das vezes recusados.
Orgulho e preconceito (Pride and prejudice; 1813) foi seu segundo romance publicado e um dos títulos mais estimados de sua novelística. Seu senso de construção duma novela (ou trama novelesca) se plasma de maneira exemplar em Orgulho e preconceito. Nada escapa ao detalhamento do ritmo narrativo de Austen. Ocorre que a tradução de que disponho pertence a um dos maiores escritores brasileiros, Lúcio Cardoso, dono de um português essencial e duma sensibilidade para a ficção (ele é autor da obra-prima A luz no subsolo, 1936) que sempre transborda. Na introdução, Lúcio defende Jane de seus críticos: o provincianismo rural da escritora (mente estreita?) e os tipos esquemáticos que ela adotava são superados, segundo Lúcio, por uma “vitalidade assombrosa” e uma “indestrutível atualidade”.
No primeiro parágrafo o leitor dá com o seguinte dizer: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.” É para dar para trás, não, caro leitor do século XXI? As situações romanescas as mais triviais, e com ares antigos, se acavalarão ao longo deste romance que em muitos aspectos antecipou os clichês das novelas de rádio e de televisão do século posterior. A diferença central está na dignidade estética e nos aspectos originais (primitivos) duma artista consciente da força de seus meios de expressão. As cenas individuais poderiam pertencer a qualquer telenovela dos anos 80 no Brasil: o conjunto narrativo é que é soberano, e isto é tudo em literatura, a força de um conjunto.
Em tempos recuados lembro que minha mãe leu Orgulho e preconceito, o único livro de minha biblioteca que lhe interessou. Mais recentemente, minha filha adolescente se pôs a ler Jane Austen. Que é que levaria minha mãe, quase iletrada, embora me tenha alfabetizado, a devorar um prato servido por Austen? Que é que em Austen poderia chamar a atenção duma jovem do século XXI habituada com bruxos e vampiros em imagens? A forma de tratamento do tema amoroso ligaria Austen às histórias telenovelescas e aos folhetins visuais infanto-juvenis? Elizabeth e Darcy se ojerizam inicialmente, mas, ao aproximar-se do fim da história, o amor aparece. Certamente já se viu isto em muita novelinha vagabunda. É preciso não confundir a mestria de Austen com tudo isto. Mas é bom que se leiam seus livros mesmo que o seja por estes motivos tortos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br