Um Romance Demoníaco
A Luz no Subsolo é uma soberba descrição do inferno humano
A ficção do mineiro Lúcio Cardoso foi aos poucos reeditada durante a primeira década do século XXI, e isto permite que o público atual, acostumado com a clarividência duma linguagem e dum universo mais jornalísticos, tope com um modo de escrever e de interpretar o mundo bastante fora de padrão. Lúcio só não o esqueceram mais porque seu Crônica da casa assassinada (1959) é sempre citado e teve uma versão em celuloide de seu devoto cinematográfico, o cineasta Paulo César Saraceni; ao resto da obra de Lúcio só os ratos de biblioteca tiveram acesso no correr de muitas décadas.
Foi assim que, contando eu vinte e três anos, isolei-me febril numa sala de biblioteca pública, por algumas horas em alguns dias, para ler A luz no subsolo (1936), romance que Lúcio deitou no papel no furor de seus vinte e três anos (coincidência entre escritor e leitor). Ao ver os livros de Lúcio serem despejados novamente nas livrarias, torcia pela reedição deste texto cuja claustrofobia e perversidade moral me atormentaram há vinte e cinco anos. É chegada a hora: desde as primeiras páginas, o reencontro com A luz no subsolo me dá ingresso neste mundo psicologicamente torpe que só Lúcio soube trazer para nossa literatura; o olhar mau do jovem Lúcio já era, nesta fase inicial, o mesmo que ele adotaria em toda a sua trajetória literária, e o que impressiona é que um artista tão novo pudesse apresentar uma riqueza de metáforas interiores dispostas em cena com um invejável senso narrativo.
A luz no subsolo é uma soberba descrição do inferno humano; ali no caminho do italiano Dante e do russo Dostoievski o brasileiro Lúcio situa sua pena. É certamente o mais dostoievskiano dos romances brasileiros; se o temperamento aberto tributado a nosso caráter nacional não permitiria um Dostoievski por aqui, Lúcio veio a provar com seu livro que era possível compor a experiência dostoievskiana da alma entre nós. Certos diálogos reflexos com personagens anônimas e demoníacas remetem a Os irmãos Karamazov (1881), de Dostoievski, penso sobretudo na conversação sombria do mais precário dos irmãos com a figura do que seria o diabo; mas Lúcio nunca é um copista, um submisso: seu fogo próprio dá-lhe originalidade.
Uma das curiosidades é que também em 1936, ano da publicação de A luz no subsolo, despontou no mundo de nossas palavras outro romance básico: Angústia, de Graciliano Ramos. Ambas as narrativas são irrespiráveis, pesadelos em frases, pessimismos verbais. Mas Graciliano é mais seco, mais rude, metáforas e sintaxes menos rutilantes que aquelas de Lúcio. Descem ao inferno ambos, mas os retratos divergem: há uma certa dimensão física em Graciliano que Lúcio despreza tornando as movimentações das personagens de Lúcio mais vagas. “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente” inicia o narrador de Graciliano, dispersando o tempo narrativo. “Muito tempo, o braço apoiado à parede, hesitou, sentindo crescer rapidamente a sua inquietação” principia o narrador de Lúcio, entrando num dos muitos transes de uma das personagens do livro, começando por dissociar igualmente a perspectiva de espaço-tempo. Ecos de um universo (Graciliano) no outro (Lúcio), tão contemporâneos e tão diferentes, tão fora dos padrões sociais do romance brasileiro dos anos 30.
Penso que está na hora de rever a questão: se Crônica da casa assassinada avançou na estrutura narrativa, é mesmo no hoje quase desconhecido A luz no subsolo que Lúcio jogou para o alto seu poder criativo e linguístico chegando a uma obra-prima. Mas isto, “premidos num subsolo, não podemos ver senão de um modo arbitrário e confuso”. Por quê? Porque somos educados pela mesmice jornalística do fim do segundo milênio.
O texto precedente eu o escrevi em 20 de janeiro de 2004, quando começaram a reeditar a obra de Lúcio. Reescrevi-o agora, em 2014, mantendo sua estrutura e quase integralmente suas palavras, modificando somente certas ponderações que poderiam indicar a época de sua escritura ou uma ou outra imprecisão da frase. Publico-o neste espaço, contando que aqueles que se nutrem de literatura, especialmente os jovens que ainda não tenham topado com a ficção de Lúcio, possam sair à caça dos romances reeditados do grande mineiro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br