RETRATO DO INFERNO: UM HOMEM CHEGA LA

As notas di?rias de Reck come?am em 1936 e se concluem em 1944

01/12/2022 02:45 Por Eron Duarte Fagundes
RETRATO DO INFERNO: UM HOMEM CHEGA LA

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Friedrich Reck-Malleczewen é um escritor alemão praticamente desconhecido entre nós. Seu trabalho mais referido pelos historiadores e críticos é Diário de um desesperado (em alemão, Tagebuch eines Verzwifelten, em inglês Diary of a man in dispair), publicado originalmente em 1947. Em 2017 a editora paulista SESI-SP trouxe ao conhecimento do leitor brasileiro o texto de Reck, em tradução de André Caramuru Aubert que foi inicialmente uma dissertação de mestrado em História do tradutor. No caso de um autor de que não temos grandes pistas, esta tradução se reveste mesmo dum esforço ensaístico, desde a minuciosa introdução até as preciosas e agudas notas de pé página, tudo acaba fazendo parte do conjunto da obra, que é iluminar as meditações de um brilhante espírito germânico no interior da época infernal que lhe coube viver.

As notas diárias de Reck começam em 1936 e se concluem em 1944. Em 1945, já nos estertores do Estado hitlerista, Reck é executado pelos nazistas. Ao longo do texto, acompanhamos sua constante irritação com os bárbaros que chegaram ao poder na Alemanha. “Tive recentemente com um sujeito a mais esclarecedora conversa a respeito dos nazistas e de como chegaram ao poder. Ele disse que essa pretensa ‘Revolução Alemã’ é pura e simplesmente baseada em chantagem.” Nos últimos apontamentos Reck está preso. “Fui conduzido para fora, fui trancado de novo, e passei por aquilo que provavelmente todo prisioneiro prestes a ser libertado enfrenta: horas de incerteza nas quais o medo é de que no último minuto alguma coisa aconteça. Você procura, ridiculamente, um sinal, qualquer coisa que alivie a tensão: as horas finais são quase tão ruins quanto as primeiras horas, sob o choque inicial da prisão.” No meio do caminho Reck descreve os cenários torpes de um país, de um tempo histórico. “Na Münster cercada de 1534, as pessoas foram levadas a engolir o próprio excremento e a comer seus próprios filhos. Isso pode acontecer conosco também, assim que Hitler seus sicofantas encararem o mesmo inevitável fim de Bockleson e Kmipperdolling.” Certas passagens das anotações de Reck me lembram algumas visões documentais do escritor francês Restif de la Bretonne, em As noites revolucionárias (1794), ao curso da fase mais violenta da Revolução Francesa. Como La Bretonne, Reck é uma testemunha e um repórter de sua época. Diferente de La Bretonne, Reck foi tragado mais diretamente pelo inferno.

Reck nada tinha de revolucionário em sua ideologia; mas o nazismo não logrou hipnotizá-lo, e suas diatribes contra o regime e Hitler o puseram a perder. Aristocrata e católico, ele confessa: “Sou um conservador. Sou fruto de um modo de pensar monárquico, fui criado monarquista, e a permanência é uma das pedras fundamentais do meu bem-estar físico.”

No entanto, nota-se em seu texto, ao menos neste que aqui deparamos, uma inquietação interior que torna seu conservadorismo em algo diferente daquela espécie de conservadorismo que embarcou no nazismo e historicamente compra os bilhetes de qualquer sistema autoritário. Esta inquietação nasce basicamente de sua cultura humanista, que, sabemos disto muito, especialmente no Brasil de sempre e em nossos dias mais perversamente, agasta os burocratas trogloditas que servem a certos governos. Reck descreve seu conflito com um serviçal do nazismo que quer empurrar sua biblioteca para um porão onde os ratos roerão os livros. “O antigo coletor de impostos foi inchado às dimensões de um Napoleão na consciência da própria autoridade.” Mas a agudeza de Reck desvenda com sarcasmo: “Mas o que estava acontecendo aqui era algo diferente. Para começar, no caso desse burocrata subalterno, havia o ressentimento contra o homem instruído, o ressentimento contra tudo o que fosse mais do que ele mesmo — e o sentimento de que agora, enfim, sua oportunidade havia chegado, a tão esperada oportunidade de vingar-se pessoalmente de um homem de casta superior.” De uma certa maneira, isto resume estes conflitos: lutas culturais, entre o conhecimento e a ignorância, entre o refinamento e a brutalidade. Quando chegam ao poder brutamontes com índoles claramente totalitárias, estas lutas culturais, comuns na sociedade, são transformadas em razões de Estado. E apontam seu perigo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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