A Batalha do Século XX

Pelo visto, a batalha de Argel ainda tem um longo caminho

25/11/2015 11:52 Por Eron Duarte Fagundes
A Batalha do Século XX

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Pré-escrito: O texto abaixo é uma reflexão recente de uma revisão do clássico filme de Pontecorvo. A atualidade de sua visão das guerras humanas é ainda espantosa. No século XXI, as duas principais cidades do mundo, Nova Iorque e Paris, já foram atingidas pelos mesmos muçulmanos retratados por Pontecorvo. Será o mundo ocidental tão inocente como parece ao ser pranteado? Jacques Rivette criticava Pontecorvo por expor no artifício da imagem uma realidade intransponível em imagem. O jornalista francês Daniel Psenny, cujo apartamento fica atrás da casa noturna Bataclan, em Paris, filmou o desespero dos espectadores do espetáculo em fuga na noite terrível, usando imagens do ponto de vista de sua janela, Psenny perguntava o tempo todo “por favor, que é que está acontecendo?” (“s’il vous plaît, qu’est-ce qui se passe?”) e no texto que anexou a sua filmagem referiu seu próprio ferimento ao socorrer vítimas do atentado. As tragédias verdadeiras são o espetáculo bélico no século XXI. Ouço Rivette mexer-se no túmulo. E continuamos, tantas décadas depois, oscilando entre a inocência  quase simulada duma pergunta desnecessária diante do trágico visto e  a perversidade de filmar o que é inenarrável.

 

 

O século XX foi um século agudamente ideológico. O século XXI não logrou extinguir a ideologia mas a dispersou ou coloriu diferentemente. A batalha de Argel (em francês, La bataille d’Alger; 1966)  é um produto cultural do centro ideológico da centúria. O italiano Gillo Pontecorvo, famoso por este filme e depois por Queimada (1969), se situa à esquerda neste embate. Ao tratar a questão da Argélia, com roteiro de Franco Solinas, Pontecorvo volta seu olhar cinematográfico para uma simpatia para com o que sofre, especialmente o que sofre a repressão. A primeira sequência mostra uma cena pós-tortura: ele fora torturado para revelar onde estava um dos cabeças da rebelião argelina; é um pobre e magro argelino; o soldado francês resmunga por que ele não dissera antes, teria evitado tudo aquilo; Pontecorvo, por seu tratamento de imagem, pela articulação da montagem, pela força da elipse utilizada, deixa muito claro qual é o lado certo —a ideologia interfere.

No entanto, não bastaria a A batalha  de Argel os ajustes com a ideologia de sua época para sobreviver à passagem dos anos e seguir fascinando o espectador de hoje. O que faz de A batalha de Argel uma narrativa semidocumental estupenda é que o realizador não se peja de utilizar tudo o que de melhor tem a linguagem cinematográfica para expor uma realidade crua. Pontecorvo é italiano, e, inevitavelmente, o neorrealismo rosselliniano brinca aqui e ali no jeito de encenar de A batalha de Argel. Mas vai mais além. Policializa o neorrealismo. Fere despudoradamente o olho do real. Pontecorvo, como o também italiano Elio Petri e o greco-francês Constantin Costa-Gavras, sabe inserir dentro dos momentos de realidade o momento de emoção que vem exclusivamente do cinema. Estabelece uma ponte e uma diferença entre a emoção do real e a emoção da imagem fílmica.

Alguns anos antes de A batalha de Argel o cinema de Pontecorvo se envolveu numa polêmica teórica. Esta polêmica foi orientada por um artigo crítico do francês Jacques Rivette, chamado “Da abjeção”. O mote da ferocidade crítica de Rivette foi o filme Kapo (1959), de Pontecorvo, especialmente o travelling que fecha a narrativa. Basicamente, Rivette punha em xeque aquilo que considerava como uma orientação artificiosa de Pontecorvo para o método documentário. A abjeção de Rivette vinha deste choque entre a linguagem e a brutalidade da cena. Em A batalha de Argel Pontecorvo faz isto o tempo todo, caracterizando seu filme como um exercício semidocumentário em torno de um dos dramas do século XX, a forma como o colonialismo europeu tem esmagado as manifestações do terceiro mundo. Esta realidade pode ter mudado de aspecto, em face da dispersão ideológica, mas subsiste, como se vê do terrorismo muçulmano recente na Europa. Curiosamente, em A batalha de Argel os árabes já praticavam os mesmos atos de terror que vemos hoje; espremidos pela colonização ocidental, o povo árabe só poderia responder com violência. Violência e repressão permanecem na ordem do dia. Em A batalha de Argel elas são uma constante.

Sinto, porém, que estou dispersando minha ideologia, antiga e atual, para com este grande filme de Pontecorvo. Como Pontecorvo e seu filme, sou produto de uma época. Como ainda estou vivo, as épocas que sucedem me transformam. Até certo ponto.

 

Pós-escrito: Há algum tempo uma fotografia dum menininho sírio que se afogara numa praia turca rumo do paraíso ocidental consternou o mundo para um certo lado muçulmano. A morte de mais de uma centena de pessoas que se divertiam  em Paris na noite de sexta-feira de 13 de novembro de 2015 às mãos de terroristas muçulmanos voltou a consternar o mundo, mas para o outro lado: receber refugiados livremente pode provocar a infiltração do terror na Europa? Pelo visto, a batalha de Argel ainda tem um longo caminho.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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