Lula, Personagem de Cinema
Lula é uma personagem de cinema e gosta de o ser
A recente parafernália jurídico-midiática entre a Polícia Federal e o ex-presidente Lula ressuscita em todos nós, que habitamos o Brasil nestes últimos quarenta anos, o quanto Lula é uma personagem de cinema e gosta de o ser, desde os tempos efervescentes dos discursos operários na região do ABC paulista, gravados por algumas câmaras apaixonadas e instáveis. Demais, Lula e a imagem cinematográfica sempre se sentiram atraídos um pelo outro: Lula tem o carisma público e o cinema está sempre em busca deste público, seja lá onde estiver. Sérgio Moro, o juiz, é um coadjuvante que só será lembrado por participar do filme de Lula.
Então, temos que o projeto cinematográfico do realizador Eduardo Coutinho segue intacto em “Peões” (2004), considerado como o outro lado de “Entreatos” (2004), de João Moreira Salles, seu filme-gêmeo. Enquanto este acompanha os últimos trinta dias da campanha que levaram Lula à Presidência do Brasil, humanizando a figura do político geralmente transformado em caricatura pela mídia, a realização de Coutinho mostra os depoimentos de “peões” que não deram tão certo quanto Lula, trabalhadores (metalúrgicos principalmente) que na época do desemprego como epidemia permanecem à margem de desfrutar as riquezas da sociedade; no filme de Salles vemos com ênfase o narcisismo de político em que se converteu o ex-metalúrgico, no de Coutinho o último entrevistado, o operário desempregado Geraldo, fala longamente sobre as durezas de sua vida, chegando a perguntar a Coutinho se ele já foi peão (recebendo um seco: “Não.”); as últimas imagens são o debruçar-se doloroso sobre o rosto amargo e desconsolado de Geraldo, o peão que não quer que seu filho seja peão, contrariamente ao que ocorria com um entrevistado anterior, que fazia questão que seu filho, um rapaz que aparecia igualmente em cena, fosse peão, questionando a indagação de Coutinho: “É desmérito? É desmérito?” exclama a personagem com uma fúria no olhar e na face.
Coutinho faz em “Peões” mais um de seus belos filmes de conversa, em que ele busca a inserção de seu trabalho numa realidade cinematográfica. Tudo é muito sutil e sua habilidade para fazer com que suas personagens narrem é sempre espantosa; é tão simples e ao mesmo tempo tão complexo, na teia de oposições em que as diversas vozes narrativas se articulam. Se para Salles cinema é uma questão de montagem, para Coutinho a montagem se estrutura nas vozes que aparecem durante as filmagens.
Mas a figura de Lula, conquanto distante, não está ausente de “Peões”. Ele não é um dos entrevistados da fita: transformou-se muito para que pudesse submeter-se ao espírito singelo da narrativa; certamente por isso Coutinho desfez o projeto de filmar a campanha de Lula concomitantemente com Salles, filmar Lula no estágio atual da vida do ex-metalúrgico trairia o projeto cinematográfico de Coutinho, que é observar com sua câmara os seres humanos mais frágeis. Há uma única cena de Lula na campanha presidencial, uma passeata em São Bernardo do Campo: é o ponto de ligação do filme de Coutinho com o de Salles, dizem que foi ali o único momento em que as equipes das duas produções se encontraram ao longo de suas filmagens. Que aparece de Lula em “Peões”? O que aparece de Lula na película de Coutinho é cinema, citações a certos clássicos do cinema operário brasileiro, como “Greve” (1979), de João Batista de Andrade, “ABC da greve” (1979-1990), de Leon Hirszman, e especialmente “Linha de montagem” (1982), de Renato Tapajós, ocorrendo que os inflamados discursos em sindicatos pronunciados por Lula ainda hoje arrepiam, como arrepiavam quando se via “Linha de montagem” em guetos universitários no início dos anos 80. Assim, Coutinho mostra o Lula antigo como um produto do imaginário cinematográfico da época; “Peões” pode ser lido (sim: o cinema como uma escrita do imaginário, cinema lido, não somente visto) como uma retomada melancólica da luta operária, mostrando que ela parece não ter futuro em tempos sem emprego.
Bem diferente é a cinebiografia ficcional “Lula, o filho do Brasil” (2009), dirigido por Fábio Barreto, talvez o menos bem dotado de nosso clã cinematográfico Barreto; esta cinebiografia namora as facilidades do cinema. E nelas tropeça como quem cai numa armadilha. Foi assim em todos os seus filmes. Não é diferente em “Lula, o filho do Brasil”(2009), produzido por Luiz Carlos e Lucy Barreto para paparicar o ego presidencial. Dizem que Lula e sua família se comoveram às lágrimas nas sessões privadas do filme, e não poderia ser diferente, qualquer um que tivesse sua história ali narrada se emocionaria. Mas as convenções cinematográficas primárias do filme são naturalmente constrangedoras: novamente Barreto filma mal e erra o tom, mira a árvore e acerta na grama.
Vale um pouco por conhecer detalhes da vida do ex-presidente da República. Mas para rememorar a fase mais delirante da vida da personagem, a de líder metalúrgico nos anos 70 do século XX, é bem mais conveniente rever os documentários da época: “ABC da greve” (1979-1987), de Leon Hirszman, “Linha de montagem” (1979), de Renato Tapajós, e “Braços cruzados, máquinas paradas” (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio Segall.
Assim, em grande número, se evidencia que Lula, na história do Brasil, se converteu em personagem de cinema. O episódio de sua condução coercitiva para depor na Polícia Federal casa bem com tudo o que o cinema tem mostrado ao longo dos anos: lutar pelos metalúrgicos no fim dos anos 70, tentar a Presidência da República e depois chegar a Presidente, aparecer como o injustiçado da vez e, creiam-me, praticamente lançar a base às avessas da publicidade de sua futura campanha para tornar ao Primeiro Posto são somente pretextos para que a alma de Lula toque no que realmente importa nos tempos atuais, representar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br