A Linguagem e a Personagem
Quem esta na cena central de Controle eh a personagem de Maria Fernanda, cujo problema de epilepsia a poe inicialmente a margem duma humanidade controlada
A escritora Natalia Borges Polesso nasceu na cidade gaúcha de Bento Gonçalves, no começo da década de 80 do século XX. É pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Caxias do Sul. Seu nome literário já ultrapassou fronteiras estaduais e nacionais. Seu romance Controle (2019) está publicado pela Companhia das Letras. Ao ler seu romance, o leitor constata: não é para menos. Apesar de manter alguma aproximação a nosso sotaque (os franceses dizem acento, o que me parece definir melhor quando penso neste ambiente em que eu próprio vivi parte da infância e adolescência, a serra gaúcha, em Bento Gonçalves; embora a cidade-referência da narrativa de Natalia seja Campo Bom, onde ela se criou, pois em Bento ela somente nasceu, nunca chegando a morar lá) diário interiorano, vai além em sua investigação dos conflitos do ser diante do mundo; Natalia, ou a narradora literária que ela cria para expor-se em palavras, tem o controle sobre o material que utiliza, os assuntos, as cenas, os modos de expressão —é como se tudo ali em Controle tivesse uma existência prévia, de sempre, que coube à romancista descobrir e pôr no papel. A dinâmica narrativa parece ter crueza e acuidade.
Quem está na cena central de Controle é a personagem de Maria Fernanda, cujo problema de epilepsia a põe inicialmente à margem duma humanidade controlada e logo vai contracenar, e acentuar a densa marginalidade do ser, com uma sexualidade difusa, expondo-se na homossexualidade, embora haja ainda o imaginário heterossexual, mas não é bem isto, é uma nova sexualidade literária, fora dos nossos conceitos e preconceitos, algo que poderia lembrar os aspectos libidinosos de certas descrições de João Gilberto Noll ou as murmurações mais secretas de Lygia Fagundes Telles. Ou nada disto: porque Natalia atingiu maturidade e originalidade.
Os signos de interpretação da vida da personagem espalham-se. Lá pelo começo de Controle a criatura anota algo sobre o músico inglês Ian Curtis, que sofria de epilepsia e no fim se enforcou na casa onde vivida com sua esposa. “No dia 18 de maio de 1980, por conta de um desalento entranhado no corpo, no fundo da cabeça, naquele lugar onde ninguém pode ver, Ian Curtis se enforcou na cozinha da casa de sua mulher, Deborah. Não era mais a casa dele. Não era mais o lugar dele. Descolamento do espaço. Li que, antes disso, ele tinha assistido Stroszek e ouvido The idiot., do Iggy Pop. No dia seguinte, uma segunda-feira apática, eu nascia, enforcada no cordão umbilical.” Tanto o filme do alemão Werner Herzog (Stroszek, 1977) quanto a canção de Pop (também de 1977) são urgências duma década urgente, o limite de viver e de suicidar-se duma geração, uma década e uma geração que Curtis não quis ir além. Fernanda, a personagem que liga os fios desencampados de Controle, está no século XXI, desenvolve uma linguagem que a caracteriza num espaço bem definido e regional e sub-regional, mas: herda tudo isto (ela nasceu neste tempo-limite das coisas) e o transforma. (Em 2007 o cineasta holandês Anton Corbjin cinebiografou, de maneira forte e original, em seu filme Control, a vida e o ser do músico).
Ao curso de Controle há várias referências em inglês. Há até um longo diálogo em inglês. Mas não se trata, aqui, de colonização cultural. Há aí uma densidade e uma consequência nas citações que fazem pleno sentido. A personagem narradora de Controle, apesar dos fundos (ou fungos) trágicos que é capaz de conduzir, não deixa de ser irônica em algumas observações circunstantes. “O Davi era o rei da oratória e pediu para fazer o ‘cerimonial das apresentações’ de olhos fechados e depois os abriu como se nos chamasse de ignorantes. Nós assentimos. Pensamos que seria massa alguém fazer a pompa toda.” Junto com a travessura, ou em paralelo, aspectos psicanalíticos encaixados de maneira, no melhor sentido, literária, mas sem oratória propriamente. “Não entendo. Aos poucos abro os olhos. Luz, não há muita. Não entendo. Vejo e ouço tudo. Parece tudo ao mesmo tempo. Lentamente. Mas estou no fundo de mim. Longe. Deito no fundo de mim. Um leito macio. Fluo. Sinto as mãos da minha mãe ao redor de minha cabeça e vejo meu pai segurando minhas pernas. Animais nervosos ainda. Burn my skin in the heat of the night who felt those cold hands touch my skin deep within burn my soul... Ultraviolence.”
Controle é na verdade uma navegação estética. Fala de uma personagem, de um tempo, aplica uma linguagem a esta personagem e a este tempo que é uma transposição para uma literatura bastante particular duma linguagem e duma personagem que nascem mesmo dum local e dum tempo dos espaços reais, uma evocação em palavras da Campo Bom atual ou antiga, que não poderia ser a Bento Gonçalves em que este comentarista viveu nos anos 60 e começos dos 70 do século XX, mas tem circunstâncias constantes, entre os 60 e agora, entre uma cidade de interior e outra. Controle também apresenta suas ambiguidades complexas, talvez eu seja gay, sabe, gente?, uma interrogação que foge na verdade à simplicidade da frase para quem se debruçou sobre o enredo que articulou uma outra forma de sexualidade na literatura. No pós-leitura do analista estas coisas flutuam: fluem. A linguagem simples para coisas e uma personagem complexas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br