Os Olhares da Personagem Segundo Khouri
Ninguém no cinema brasileiro filma melhor do que o paulista Walter Hugo Khouri o olhar duma personagem
Ninguém no cinema brasileiro filma melhor do que o paulista Walter Hugo Khouri o olhar duma personagem. E também ninguém melhor do que ele em nosso cinema soube filmar o gesto do corpo, o sexo como elemento plástico-metafísico duma narrativa cinematográfica. Abro meu texto de revisão de Amor, estranho amor (1982) com estas duas frases porque elas me parecem conter o essencial dos conceitos de realização deste que é um dos mais belos filmes de Khouri. Rodado depois das ousadias sexuais que jogariam Khouri nos braços de um cinema comercial que era estranho à sua sisudez espiritual (O prisioneiro do sexo, 1979; Convite ao prazer, 1980; Eros, o deus do amor, 1981), Amor, estranho amor permanece em parte dentro destas ousadias carnais mas recua um pouco até os limites intelectuais de Paixão e sombras (1977), talvez um de seus trabalhos menos acessíveis à cabeça do público habitual dos cinemas.
Amor, estranho amor nada tem de inacessível, mas apresenta lá seus tons secretos que lhe conferem um charme particular. É, na verdade, um olhar de menino que vai narrar o filme. Um madurão chega a um casarão que vai ser tombado e onde se instalará um instituto cultural. O madurão vai chegar aos olhos do menino que ele foi e ali viveu alguns dias em 1937, às vésperas do Estado Novo (nunca citado nominalmente por Khouri); o encontro de olhares entre o adulto e a criança, entre o presente nostálgico e o passado fugidio remete a certas experiências formais que na época o espanhol Carlos Saura andava disseminando com sensibilidade e profundidade no cinema. As lembranças da personagem começam pelo momento em que sua avó a deixou à porta do bordel onde a mãe servia de prostituta; esta mãe era basicamente sustentada por um figurão da política paulistana daqueles dias tumultuados. Khouri filma com precisão e jogo de cintura cinematográfico as trocas de olhares entre o garoto e as mulheres do local, criando um belo liame entre um espaço-presente-futuro e um espaço passado-presente. Os corpos enovelados de Tarcísio Meira (o político) e Vera Fischer (a meretriz-mãe) são captados com sinuosidade pelo realizador. Eis senão quando, o garotinho se vê fascinado por uma das garotas da casa, uma falsa virgem pretendida por um companheiro do político; esta garota é vivida por uma adolescente Xuxa Meneghel, que anos depois, conhecida como a rainha “pura” dos baixinhos, perseguiu o filme, impedindo suas exibições no Brasil sob qualquer forma, para não macular sua então imagem de apresentadora infantil —no filme sua cena de sexo com um menor é arrebatadora, não poderia ser diferente em se tratando de Khouri.
Amor, estranho amor vai enveredar também pela questão do incesto, tema caro ao cinema intelectual europeu de que Khouri é tributário (o francês Loius Malle, o italiano Bernardo Bertolucci). Lá pelo fim do filme a mãe acolhe o filho em seu regaço e as relações sexuais-maternais ocorrem. O olhar do homem maduro que se vê transando com sua mãe tem uma excitação angustiada, entre benevolente, agradecida e perturbada.
É pena, somente, que se possa ver o filme numa cópia em dvd extraída dum versão em VHS, desfigurando bastante a plasticidade da fotografia original de Antonio Meliande. Mesmo assim, o rigor da movimentação cênica de Khouri transparece, permitindo ao observador o contato com um dos filmes brasileiros dos anos 80 cuja importância tende a crescer, especialmente se a querela entre Xuxa e a produtora se esvair e se lance comercialmente o filme.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br