A SELEO NATURAL

O Fim e o Princpio o exemplo mais agudo de um documentrio brasileiro de hoje

02/02/2014 22:53 Da Redação
A SELEÇÃO NATURAL

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Vou começar falando de O fim e o princípio (2005), o exemplo mais agudo de um documentário brasileiro de hoje, citando algumas idéias revolucionárias do ensaio Cineastas e imagens do povo (1985). Falando do documentário sociológico que imperava no Brasil na década de 60, o livro definia em três frases: “A voz do locutor é diferente. É uma voz única, enquanto os entrevistados são muitos. Voz de estúdio, sua prosódia é regular e homogênea, não há ruídos ambientes, suas frases obedecem à gramática e enquadram-se na norma culta. Outra característica: o emissor dessa voz nunca é visto na imagem.” E mais adiante: “Diferentemente do entrevistado, nada lhe é perguntado, fala espontaneamente e nunca fala de si, mas dos outros.” Parece que as inquietações do crítico Jean-Claude Bernardet foram escritas para que o cineasta Eduardo Coutinho interferisse nestas regras do documentário: o locutor é a voz do saber que não pertence ao universo retratado; não se mistura, pois nunca é visto no quadro, e assim, fora do joguinho semificcional do documentário, não é constrangido por pergunta alguma. Em O fim e o princípio Coutinho interliga as seqüências por suas obsessivas aparições como mais uma personagem do universo que ele expõe diante da câmara; e seguidamente os homens de interior que ele filma lhe empurram perguntas que ele não sabe como responder. É bem verdade que nos filmes anteriores de Coutinho esta distância entre o mundo e o cinema já estava bastante apagada; com Cabra marcado para morrer (1984, lançado pela mesma época do profético ensaio de Bernardet, o diretor já estava na cena narrativa do filme e sua personagem não era uma criatura tranqüila e sabichona, como a do locutor clássico, uma das diferenças é que Coutinho, o diretor, era também o locutor e ia eliminando a voz do saber da habitual narrativa-over. Mas é mesmo em O fim e o princípio que a radicalidade do método de filmar de Coutinho atinge seu apogeu: a incompletude da vida está inteira neste fim sem princípio ou neste princípio sem fim. Voltando: Cineastas e imagens do povo foi escrito para que o cinema brasileiro um dia produzisse um filme como O fim e o princípio.

O anedotário jornalístico em torno de O fim e o princípio, título meio enigmático e de vários ângulos semânticos, conta que Coutinho foi ao sertão da Paraíba sem nenhum assunto nem pesquisa prévia: o próprio Coutinho, no início do filme, fala desta busca por um tema ao seguir no encalço duma locação ou de pessoas que tenham histórias para contar. Na verdade, roteiro mesmo nenhum filme de Coutinho tem: há sempre um esqueleto, uma diretriz, apontamentos que se abrem para o inesperado na hora da filmagem. O que torna O fim e o princípio mais perturbador é que este método é radicalizado: não há apontamentos e o filme se torna um ziguezague em busca de si mesmo. No tópico “Projetos”, incluído no fim do livro O documentário de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo Lins, o diretor advoga: “Qual a razão para agora querer fazer um filme em um distrito rural do Nordeste? Porque eu quero fazer o contrário da cidade grande. Cidade grande é Peões, Master, Babilônia – tudo isso é cidade grande. Agora eu quero voltar para o campo, mas sem tema. Uma vida rural que mal tenha televisão. O meu prazer seria encontrar um núcleo geográfico e fazer um filme inteiramente neste lugar, sem pesquisa e com uma equipe mínima, quatro ou cinco pessoas.” Isto dito seis meses antes de começar a rodar o filme, surge assombroso diante do filme pronto, pela exatidão do projeto de um filme em busca de seu tema: sintoma duma convicção que as aparentes divagações de Coutinho indicariam noutro sentido, o sentido do amadorístico precário; Coutinho trouxe das possibilidades amadoras do cinema o melhor, a seiva vital, e desprezou o ranço. Diz ainda: “Não há por que ter um tema. O que é a vida em uma vila? E por que no sertão nordestino? Porque lá a invenção verbal é muito forte. O lugar no Brasil onde se inventa melhor é no sertão. Podia ser também no vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.”

O fim e o princípio, projetado como um documentário sem assunto próprio, é um pouco isto: um vagar, uma conversa mole sobre a vida. Mas igualmente apresenta seu assunto que talvez estivesse no inconsciente de seu realizador: todos os entrevistados, com exceção de Rosa, que funciona mais como uma auxiliar de direção ao introduzir a equipe de cinema no meio social em que ela vive e onde está sendo rodado o documentário, são figuras idosas, algumas bem idosas, os planos muito próximos daqueles rostos deformados pelo tempo são uma contemplação sobre a velhice, que é no fim e no princípio o objeto mesmo deste filme no princípio sem assunto; sendo o próprio Coutinho um homem idoso, já passou dos setenta anos, é natural que selecione entrevistados velhos. Nos filmes de Eduardo Coutinho há sempre um forte jogo com o acaso; em O fim e o princípio o acaso é o principal gerador da linguagem cinematográfica e este acaso, paradoxalmente, vai dar uma estranha unidade à narrativa. Coutinho, no citado “Projetos”, elabora: “O acaso é fascinante, mas também não o acaso total, porque senão não existe filme. O acaso acontece, mas você o controla, separando o bom acaso do mau, do inútil.”

A penúltima imagem da fita vai mostrar a família de Rosa, a auxiliar de direção e personagem de Coutinho, à mesa de refeições, tagarelando. O último plano do filme é um plano geral silencioso da mesa depois que todos se retiraram: as vozes e as imagens são só lembranças. Trata-se de um gesto nu do cenário. Aí eu penso na vontade expressa por Coutinho de usar o tempo morto, filmar as pessoas fazendo coisas anódinas, preparando a comida, preparando lenha, sem falar. Coutinho, que gosta de ouvir a voz do outro, seria capaz de contemplar o silêncio do outro? O plano derradeiro de O fim e o princípio demonstra que, pelo menos, o silêncio dos seres que se tornaram invisíveis na imagem ele é capaz de filmar, senão pelos cinco minutos que ele disse desejar, por alguns significativos e profundos segundos.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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