Naum: ou a Arte da Escrita Natural
O leitor do contista Naum Alves de Souza, se porventura ja deu com seus dramas teatrais, vai topar os mesmos elementos de encanto
Naum Alves de Souza é um dos grandes nomes da dramaturgia brasileira. Em 1983, em Porto Alegre, a encenação de sua peça No natal a gente vem te buscar, pelo grupo do Teatro Vivo, sob a direção sempre engenhosa e inventiva de Irene Brietzke, foi um acontecimento cultural para quem então vivia a busca de coisas novas em nossos palcos. Poucas vezes o espectador teatral teve a oportunidade de dar com um texto e um universo postos com tanta veracidade e naturalidade, sem nunca beirar simplificações, ocultando e abrindo sutilezas capazes de despertar os sorrisos e as inquietações da plateia. Dois anos depois aquela carga de autenticidade dum modelo dramatúrgico voltava a apanhar na veia o amante de teatro em Porto Alegre: outro drama de Naum, A aurora da minha vida, era levado em nossos palcos, novamente dirigido pela experiência cênica de Irene. Tanto o paulista Naum quanto a gaúcha Irene já faleceram (em tempos mais ou menos recentes); mas as lembranças teatrais dos anos 80 entre nós são marcas definitivas duma memória intelectual e estética.
Então, tantos anos depois, quando Naum e sua arte imbatível já parecia uma daquelas afeições culturais guardadas em silêncio e meio ocultadas por outras preocupações que o tempo traz, eis-me diante dele, um Naum igual e diferente. Um Naum contista. Igual porque ressurge ali aquela espontaneidade de que me lembro de suas antigas peças: como as águas de um rio, o texto, as situações e as personagens de Naum escorrem naturalmente diante de nossos olhos e de nossa alma; não há entraves entre a nossa vida e a palavra de Naum Alves de Souza. Assim era Naum: assim ele é. O livro de contos é Tirando a louca do armário & outras histórias (2015), editado pela Descaminhos, de São Paulo.
Geograficamente pode haver coisas de São Paulo, a metrópole paulista e outras cidades, Ubatuba, Santos. No entanto, ali está o Brasil: ali estamos nós. As strippers se prostituem num espaço teatral e, prostitutas, agem como atrizes. No natural de Naum há sempre uma enviesada e sutil excentricidade, como em Kafka, mas diferentemente: penso nesta brasileiríssima, original burguesa Venúsia, que se põe a tagarelar (como louca e como mulher comum) para uma varredora da prefeitura municipal. “Você teria um segundinho para me escutar?” O segundinho de Naum se estende: diverte, ironiza, medita, surpreende. À morte de Venúsia, a que despeja palavras, uma revelação que surpreende: “Ela não escutou porque estava surda.” No natural de Naum há espaço para a sofisticação: sem perder a naturalidade. Esta criatura da Maestrina Ludmila Sewokyworst é bem isto.
O leitor do contista Naum Alves de Souza, se porventura já deu com seus dramas teatrais, vai topar os mesmos elementos de encanto. Naturalmente refeitos para adaptar a uma outra linguagem: irmã, mas outra. É também a mesma “verdade literária” com que Naum escreveu o roteiro de Romance da empregada (1988), filme dirigido por Bruno Barreto e exibido há tantos anos numa sessão de encerramento do Festival de Cinema de Gramado. Então, Naum: um artista brasileiro da ponta em tudo o que fez.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br