O Lugar de Alice
Alice Não Mora Mais Aqui tem toques de comédia, possui uma forte carga dramática em sua trama e ainda segue algumas regras de road-movie
Ninguém nasce empoderada. Por mais libertárias e bem-resolvidas que tenham sido nossas mães e avós, o patriarcado ainda está de pé e muitas serão as gerações que terão de enfrenta-lo para seguirem em busca de seus objetivos. Martin Scorsese, um cineasta conhecido por conduzir histórias com intensos personagens masculinos, deu ao mundo um filme que, mesmo depois de mais de 40 anos de sua chegada aos cinemas, ainda é referência para quem quer uma protagonista forte e verdadeira. Alice não mora mais aqui é um corpo estranho na filmografia do diretor, do mesmo modo que Peggy Sue – Seu passado a espera o é na de seu contemporâneo Francis Ford Coppola. Foi ele, aliás, quem indicou Scorsese para Ellen Burstyn quando ela ainda estava em busca de alguém para comandar o roteiro dos seus sonhos.
Alice não mora mais aqui tem toques de comédia, especialmente nos diálogos, possui uma forte carga dramática em sua trama e ainda segue algumas regras de road-movie. Confuso? Sim, e não à toa. A mistura apresentada no roteiro reflete os incontáveis sentimentos que circulam em Alice e que Burstyn interpreta com uma segurança incrível. Sua atuação, merecidamente premiada com o Oscar, vai em um crescente, acompanhando a chegada da maturidade emocional da personagem. O título já indica que estamos diante de uma mulher que não sabe e nem pretende ter destino certo. Por mais que entre suas queixas esteja o fato de não ter um lar fixo, Alice sabe que não poderá fincar raízes antes de encontrar o que realmente procura: ela própria.
Após anos vivendo sob a monotonia de um casamento infeliz, mas que ela faz questão de manter, claramente motivada pela ideia de que uma mulher precisa de um homem para ser completa, a moça torna-se viúva. Mesmo que chore no velório, no fundo ela sabe que a morte do marido é uma carta de alforria e que ela deve mudar de casa não apenas no sentido literal. Sair da comodidade assusta, mas é tudo que ela precisa. A despedida da melhor amiga não é sofrida à toa. Alice está deixando para trás não apenas o que lhe atormentava, mas também as suas poucas alegrias. E o que vai se seguir também terá o sal das lágrimas como tempero. Alice irá crescer, mesmo já tendo 35 anos e um filho pré-adolescente. Vai tentar fugir de novos amores, vai se arrepender deles, vai encontrar homens tão violentos quando o falecido marido, vai tentar ser boa mãe sem deixar de experimentar sua individualidade. Vai errar, sofrer, contar os centavos no fim do dia e, o mais importante, não vai voltar atrás. Não há retorno em Alice não mora mais aqui. A estrada é plana e a próxima parada é sempre em frente. A marcha ré está proibida.
Apesar da força, Alice não é de ferro e como acontece em toda a história das mulheres ao longo dos anos, é preciso apoio. E ela o encontra em Flo, a colega de trabalho que o que faz de menos importante é ensiná-la a ser garçonete. Diane Ladd está estupenda no papel, mesclando coragem e carinho em doses iguais, sendo o símbolo da sororidade dentro da trama. O roteiro acerta ao iniciar a relação das duas de forma tensa, com a antipatia mútua tomando conta do ambiente. Nem sempre é de primeira que se encontra aconchego. É assim na vida, é assim em Alice não mora mais aqui.
Um filme sobre uma mulher que quer romper a própria ingenuidade. O que em outras personagens acontece por acaso do destino, em Alice é escolha. Ela poderia muito bem esperar sentada por algo que lhe tirasse do eixo, costurando um novo vestido enquanto prepara o jantar. Mas preferiu arrastar o filho rabugento, aguentar suas malcriações e abandonar o conforto da própria cama. Uma inspiração que não pode ser esquecida e que, por si só, já serve para batizar Alice não mora mais aqui de clássico.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.