Um Francs em Lugar Nenhum
A Garota de Lugar Nenhum est entre os mais fascinantes e rigorosos filmes da segunda dcada do sculo XXI
Em francês “nulle part” é o oposto de “partout”. Alguém pergunta nos sopros de um romance de Balzac: “Il y a donc de la France partout?” O título de um filme do realizador francês Jean-Claude Brisseau vai responder que há um tipo de personagem francesa que não está em lugar nenhum. A garota de lugar nenhum (La fille de nulle part; 2012) venceu o Festival de Locarno há alguns anos e se põe, desde agora, entre os mais fascinantes e rigorosos filmes da segunda década do século XXI. Pode-se dizer que o próprio cinema de Brisseau é uma categoria de cinema francês de lugar nenhum; associado aos meios propositadamente minúsculos dos sistemas de produção da Nouvelle Vague, o estilo de filmar do cineasta segue algumas diferenças pessoais que o impediram de cair na estima habitual dos grandes nomes, pois sua secura é de outro naipe; considerado um intelectual, como seu mentor Eric Rohmer, pois, como Rohmer, frequentou a cátedra antes do cinema, Brisseau adota um certo laivo rude da encenação cinematográfica que é tão pouco intelectual no sentido comum. Assim, o limbo de um diretor como Brisseau é benfazejo e traduz muito frescor de encenar.
Em 2005 o cineasta sofreu uma condenação judicial (prisão) pela exposição sexual de duas atrizes em seu filme Coisas secretas (2002). Sua carreira ficou um tanto quanto bagunçada com o episódio. Autodefinindo-se como “o filho duma faxineira vivendo num sonho de cinema”, Brisseau acaba unindo pólos contraditórios do cinema francês. Como se vê em A garota de lugar nenhum. Reduzindo o cenário narrativo ao próprio apartamento em que mora o realizador e basicamente estabelecendo em cena os contatos únicos e estranhos entre duas personagens, o madurão vivido pelo próprio cineasta e a jovem interpretada por Virginie Legeay, que é também assistente de direção de Brisseau, A garota de lugar nenhum recaptura um tipo de cinema um tanto esquecido nos dias de hoje, um cinema que já existiu em algum lugar, mas que na verdade é feito por Brisseau em lugar nenhum, para lugar nenhum, seja que estado de espírito esta expressão queira expressar.
No começo do filme uma garota é espancada por um suposto namorado nos cantos dum prédio de apartamentos. Um dos moradores, um senhor, vê tudo e recolhe a jovem para seus aposentos. Da relação entre secreta e tensa entre os dois a narrativa retira seu engenho; ele é um professor que fala de arte, pensamento e crença, ela uma garota que preenche a imaginação de fantasia erótica do homem em algumas imagens de pensamento e também é o contraponto da vida na filosofia do mestre. No fim do filme o professor é assaltado e esfaqueado na entrada do prédio. Esperando-o para um jantar refinado, ela se põe a socorrê-lo quando o vê entrar ferido. Entre os dois movimentos das duas pontas do filme, em que um precisa do outro e ambos se dispõem a servir um ao outro na dor, Brisseau vai encenar uma das mais simples e agudas histórias de aproximação humana do cinema contemporâneo.
Balzac, o romancista clássico, estava por todo o lugar (partout, uma França partout). Brisseau, o cineasta depois que todos os lugares foram destruídos, está no lugar nulle, o lugar-zero, o lugar-nenhum. Dir-se-á: Balzac está para Karl Marx assim como Brisseau está para Michel Maffesoli; cinco está para dez, assim como dois está para quatro; uma equação, uma regra de três, onde Maffesoli poderia ser o X da questão.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br